Fernanda Marques e Nathállia Gameiro
Exatamente um ano atrás, em 20 de novembro de 2019, a Fiocruz lançava a iniciativa “Conviver: 365 dias de Consciência Negra”, com a proposta de incluir pautas relacionadas à população negra em atividades promovidas pela instituição ao longo de todo o ano, além de eventos específicos sobre o tema. Nesse primeiro ano, com todos os desafios impostos pela pandemia da Covid-19, a iniciativa se manteve firme: a presença, a visibilidade e a valorização da população negra, suas lutas e contribuições foram fortalecidas.
“Podemos celebrar os 365 dias do projeto, que trouxe impactos para a instituição. O tema está presente em discussões e comitês internos, inclusive na Escola de Governo Fiocruz – Brasília, com os profissionais de saúde e estudantes, até mesmo na construção de uma disciplina sobre racismo na saúde em todas as unidades da Fiocruz. A Fundação hoje tem um futuro desafiador e corajosamente está assumindo essa pauta em suas teses e debates. Nós não nascemos racistas, nós aprendemos a ser racistas. Então podemos também aprender a não ser”, afirma a vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin), Denise Oliveira.
“Alinhada ao Comitê Fiocruz Pró-Equidade de Gênero e Raça, nossa proposta é manter o processo de conscientização ao longo dos anos, não apenas no mês de novembro. Nas rodas de conversa e nos eventos, buscamos incluir e valorizar o tema. Percebemos que discutir o tema com a Comunidade Fiocruz Brasília nos faz pensar, nos faz ver o quanto o racismo ainda é latente entre nós e nos faz buscar meios de combatê-lo”, avalia a coordenadora do Serviço de Gestão do Trabalho (Segest) e integrante do Comitê Pró-Equidade da Fiocruz Brasília, Daniela Garcês.
O racismo e as desigualdades sociais históricas colocam os negros em situações de vulnerabilidade em relação à Covid-19, tema que, em 2020, foi alvo não só de diversas discussões na Fiocruz Brasília, como também de medidas práticas para o enfrentamento do problema, incluindo a articulação entre Vigilância e Atenção Primária à Saúde por meio de ações de base comunitária nos territórios do Distrito Federal (DF).
Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, um trabalho sobre o racismo no SUS realizado por alunos Residência Multiprofissional em Atenção Básica da Fiocruz Brasília. O fisioterapeuta Arthur Alves Pereira de Sousa, a nutricionista Cristiane Souza da Silva e a assistente social Raquel Rodrigues da Silva Barbosa, profissionais negros que atuam na Unidade Básica de Saúde 12, em Ceilândia (DF), idealizaram o projeto “Ecos: Consciência, Cor e Saúde”, que informa profissionais e usuários da UBS sobre as diferentes manifestações do racismo na área da saúde. Eles chegaram, inclusive, a realizar uma exposição sobre o tema na UBS, seguindo todos os protocolos sanitários.
Debates virtuais também marcaram a agenda 2020 da iniciativa “Conviver: 365 dias de Consciência Negra”. Em julho, a roda de conversa “Racismo e Mercado de Trabalho/Racismo no Trabalho” mostrou que, apesar das políticas públicas que visam à redução das desigualdades históricas no país, muito ainda precisa ser feito. Em agosto, outra roda de conversa, “Educação Antirracista”, destacou a importância de agir, investir e garantir oportunidades efetivas para as pessoas negras, nas escolas, nas instituições e no mercado de trabalho, do pequeno comércio às grandes corporações, fazendo duras críticas ao racismo institucional e à falta de ações que, efetivamente, possibilitem a inserção da população negra em espaços ocupados majoritariamente por não negros.
Antes da pandemia, em 11 de fevereiro, no evento promovido pela Fiocruz Brasília para celebrar o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, trajetórias de cientistas negras estiveram em destaque, entre elas a vice-diretora Denise Oliveira. “A escravidão se perpetuou ao longo do século XX e ainda temos marcas do racismo estrutural histórico. A pobreza, mortalidade e marginalidade tinham cor. O Brasil é o país que viveu mais tempo a escravidão, que só foi abolida há pouco mais de um século, por isso o racismo foi naturalizado pela sociedade”, afirma. “Mas o Brasil teve alguns avanços. Cerca de 30 anos atrás, falar sobre racismo incomodava, em 2003 começamos a ter avanços com o desenvolvimento de políticas públicas e da política afirmativa de cotas. Hoje em dia o tema é pautado em diversos meios e já temos uma intelectualidade negra em vários campos do conhecimento”, destaca.
De acordo com Denise, “ainda temos um longo caminho pela frente. O primeiro passo é a reconciliação, assumir que o nosso país é racista, reconhecer as atrocidades da escravidão e buscar equidade para todos. Temos algumas vitórias, mas queremos um país mais justo e equânime. É uma luta constante que não sei quanto tempo vai demorar, mas a possibilidade da pauta se manter viva em uma dinâmica solidária e mútua me dá esperança”. Para a pesquisadora, “o papel de instituições como a Fiocruz na luta contra o racismo e na transformação da sociedade é garantir que essa chama não se apague. É ter um diálogo com movimentos sociais e trazer pautas em uma construção coletiva, trazer as questões para dentro da instituição para valorizar a população negra”.
Um ano atrás, no evento de lançamento da iniciativa “Conviver: 365 dias de Consciência Negra”, a Fiocruz Brasília recebeu estudantes do Centro de Ensino Fundamental da Ceilândia (CEF 34), entre 11 e 13 anos, participantes de um projeto escolar que trabalha a autoestima de crianças e adolescentes, para que se reconheçam como negros e reconheçam e valorizem sua história, promovendo reflexões sobre a situação da população negra e sobre o racismo. Os estudantes fizeram discursos e apresentações culturais de dança, canto, poesia, pintura e outros trabalhos de sua autoria.
Em 2020, o CEF 34 esteve novamente com a Fiocruz Brasília. Durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), em outubro, alunos e professores participaram de atividades promovidas pela instituição, entre elas a oficina literária “Um dia, um verso”. Na ocasião, a estudante Suelen Lima brindou a todos declamando uma poesia que ela escreveu sobre o tema do racismo. “O racismo dói no peito / O racismo dói na alma / Por que discriminar o negro? / Uma raça que deveria ser exaltada / Por sua luta e dedicação / Pela liberdade dos negros / Que fizeram parte da escravidão / Até hoje eles sofrem / Tanto por desigualdade / Quanto por falta de consideração”, dizem os versos iniciais.
A poesia da jovem Suelen, do 7º ano do CEF 34, foi divulgada pela Fiocruz Brasília em suas mídias sociais, que têm sido um espaço constante para promover as pautas, reflexões e ações da iniciativa “Conviver: 365 dias de Consciência Negra”. “Acredito que nossa contribuição mais imediata seja a de dar visibilidade à causa, uma vez que no Brasil os temas de interesse da população negra ainda são muito silenciados”, diz o coordenador da Assessoria de Comunicação da Fiocruz Brasília, Wagner Vasconcelos. “Mas nossa intenção é mais ambiciosa: mostrar que a presença, a importância e a contribuição da população negra são centrais e presentes na vida do país e da própria Fiocruz”, destaca.
Desde o lançamento da iniciativa “Conviver: 365 dias de Consciência Negra”, a Fiocruz Brasília exibe em seu prédio uma intervenção relacionada ao tema: em painéis que recobrem pilastras, há poemas e alertas sobre a presença do racismo no vocabulário do brasileiro, além de informações sobre Dandara, uma das lideranças femininas negras que lutou contra o sistema escravocrata do século XVII, e Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos das fazendas do Brasil Colonial, e ícone da resistência negra à escravidão – no dia de sua morte, 20 de novembro, celebra-se o dia da Consciência Negra no país. A expectativa é que essa intervenção possa ser expandida em 2021.
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