Consciência Negra: reafirmação da cultura e da identidade do povo brasileiro

Nathállia Gameiro 22 de novembro de 2019


Projetos da Fiocruz de Brasília e do Centro de Ensino Fundamental da Ceilândia (CEF 34) mostram, na prática, como o envolvimento de toda a população é importante na luta contra o racismo, estruturante da sociedade 

 

Nayane Taniguchi

 

Olhar seguro, cabeça erguida, alegria e cores. Respeito ao próprio corpo, a si mesmo e ao outro. Orgulho da pele, dos traços, da juventude. Reafirmação da cultura e da identidade negra. Autoestima. Sorrisos estampados nos rostos de quem, há pouco, compreendeu a beleza, a importância e a valorização da população negra. Estudantes do Centro de Ensino Fundamental da Ceilândia (CEF 34) ensinam em uma fase da vida que o aprender faz parte de seus cotidianos. E conseguem, pelo exemplo, mostrar a importância do 20 de novembro, dia da Consciência Negra no Brasil.

 

A Fiocruz Brasília recebeu, na tarde desta quarta-feira (20/11), 37 estudantes que mostraram na prática o que pode ser feito para transformação da sociedade, por meio do projeto Consciência Negra, em sua quarta edição desenvolvido em ambiente escolar. Desfile de estudantes negras e negros, dança, capoeira, poesia, discursos, pintura, canto e apresentações culturais protagonizadas por crianças e adolescentes, de 11 a 13 anos, que representam a celebração de um longo processo acerca da importância da atuação de toda a população brasileira na luta contra o racismo, estrutural e estruturante da sociedade. “É esperançoso ver que a maioria de vocês reconhece a presença negra em nossas vidas, e que louvam e dignificam essa presença. Vocês dignificam os sinais de descendência afro e isso nos torna seres humanos melhores”, afirmou a vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira, aos estudantes. 

 

Entretanto, não foi sempre assim. Para provocar a mudança de comportamento nos estudantes negros e não negros, a professora do CEF 34 e uma das organizadoras do projeto Mariana Siqueira Silva conta que as ações são realizadas o ano inteiro, e se intensificam a partir de maio. “A nossa base é a autoestima desses estudantes para que eles se aceitem e se reconheçam enquanto negros, reconheçam a história da negritude deles. O projeto é muito valioso e envolve todos os professores e toda a escola”, afirma. De acordo com a docente, o resultado é percebido pelo relato dos estudantes. “Muitas estudantes chegaram sem se reconhecerem como negras, eram violentas, falavam palavrão, não gostavam do próprio corpo. Hoje, depois do projeto, elas se aceitam, e quando sofrem ofensas por causa da cor e da raça, já sabem lidar com isso. Esse é o maior termômetro que temos sobre como o projeto é importante para os estudantes na formação da identidade de gênero, de raça e social”.

 

Mariana reforça que o projeto ressalta o momento também como de reflexão, sobre a situação do negro, do racismo e do machismo associado ao racismo. “É um processo interessante que culmina na mostra. São assuntos que a gente aborda ao longo dos meses, e, em novembro, os alunos já se apropriaram dos temas. A comemoração é deles, que preparam a música, a dança e ficam meses escrevendo peças. Isso é muito interessante dentro do processo pedagógico interno do CEF 34”, acrescenta. 

 

Na manhã desta quarta-feira (20/11), a Fiocruz Brasília lançou o Projeto Conviver: 365 dias de Consciência Negra, que prevê a realização de atividades específicas sobre a população negra ou a inclusão desta pauta em ações e eventos realizados pela instituição ao longo do próximo ano. “Acredito que o principal é o processo de formação para negros e não negros que poderá ser possibilitado com essa proposta, para reverter essa ignorância história que se perpetua. Precisamos tomar consciência de que o racismo existe na sociedade e nas instituições”, destacou a vice-diretora da Fiocruz Brasília. “O desafio é manter vivo esses 365 dias a partir de hoje, e só manteremos isso se atuarmos com a formação nos nossos espaços, nas nossas famílias e também para fora. A sociedade brasileira precisa ser formada, essas questões estão entranhadas na sociedade”, acrescentou.

 

Questões sociais da população negra

Como parte da programação alusiva à data, a Roda de Conversa “Questões sociais da população negra” abordou, entre outros assuntos, as consequências do racismo e sua perpetuação no desenvolvimento social e os processos históricos significativos que culminaram na desigualdade característica do país, nos quais os negros, maioria da população brasileira, encontram-se à margem da sociedade, nas regiões periféricas e em condições precárias, por todo o país. 

 

Atualmente, ao menos 56,10% da população brasileira está mais suscetível à violência, à pobreza, ao preconceito, à desigualdade e às injustiças sociais, fundamentalmente pela cor da sua pele. Esse percentual corresponde às pessoas que se declaram negras no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (Pnad). 19,2 milhões de brasileiros se declaram como pretos e 89,7 milhões como pardos, do total de 209,2 milhões de habitantes do país. Os negros, soma de pretos e pardos de acordo com o IBGE, representam a maioria da população do país. 

 

“A população negra não consegue acessar a educação porque não consegue sair das suas casas, por medo de serem vítimas da violência. Violência é negação de direitos. O desrespeito aos nossos direitos é também uma violência”, afirmou o advogado, especialista em juvenicídio no Brasil e América Latina e mestrando em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília, Carlos Alberto de Souza e Silva Junior, ao abordar a questão da população negra sobre quatro aspectos: segurança pública, educação, saúde e emprego e renda. De acordo com o advogado, por ser negro, a chance de morrer pelo aparato policial é três vezes maior que a de um não negro, pouco importando a classe social ou o local de moradia.

 

Entre algumas medidas, os convidados destacaram a necessidade do preenchimento correto e responsável do quesito raça e cor nos formulários de identificação e nos censos realizados sobre a população, para tornar possível a obtenção de indicadores na saúde e em demais setores para a implementação de políticas públicas. “A própria forma como a população é contabilizada, como brancos e não brancos diz muito sobre a sociedade. Se a nossa população é, em sua maioria, negra, por que não fazer a contabilização utilizando negros e não negros”, questionou a professora de Educação em Direitos Humanos e Diversidade da Secretaria de Educação do Distrito Federal e professora colaboradora no curso de Gestão de Políticas Públicas da UnB, Renata Callaça. De acordo com a docente, a realidade da escola pública do DF é a população negra, mas só 2% dos estudantes se autodeclaram negros. “Ao questionar os estudantes, uma delas me respondeu: a sociedade não nos quer negra, então não vamos nos declarar desta forma”, exemplificou, ao declarar ainda que a palavra “negro” tira a invisibilidade, mas trazem os ônus do racismo estrutural da sociedade. “É preciso romper com projetos hegemônicos e excludentes, de uma sociedade racista e machista”, enfatizou.

 

O psicólogo comportamental especialista em relações étnico-raciais, Luciano de Sá, associa o racismo ao desamparo aprendido, comportamento no qual um indivíduo se sente incapaz de evitar estímulos aversivos, mesmo que se tornem evitáveis, após ser forçado a suportar esses estímulos por determinado período. Ele conta que as consequências do racismo implicam em supressão comportamental, desistência, baixo repertório do autoconhecimento, comportamento verbal afetado, comportamento de fuga, evitação, dificuldade de se relacionar, dificuldade em novos aprendizados, isolamento, aumento do comportamento agressivo e constante frustração com efeito de contingência. “Essa situação é cruel, e essa crueldade está dentro da nossa sociedade. Impacta no autoconceito, na definição de ‘quem eu sou’, resulta em uma desregulação emocional e excessivo controle por falsas regras, além de abuso de substâncias”, disse. 

 

 “Colocar mulheres negras no mundo é um ato revolucionário”, afirmou a professora do CEF 34 Mariana Siqueira ao saudar o público no período da tarde, fazendo referência a duas professoras integrantes do projeto que estão de licença maternidade. A frase destacada por Mariana ressalta a condição da mulher negra, abordada também por Renata Callaça na roda de conversa: “nós mulheres temos além de um gênero, uma cor, uma classe social e o racismo sobre corpos humanos que precisam se reencontrar nessa negritude. Precisamos nos encontrar para saber como será nossa luta, e enfrenta-la na saúde, educação, segurança, em um contexto que nos coloca na periferia da periferia da periferia da sociedade”.

 

Para a docente do Instituto Federal de Brasília (IFB) e doutoranda em Linguística – Linguagem e Sociedade pela UnB, Jaqueline Côelho, o discurso é um momento de prática social e, por meio do discurso, é que se mantém e se estabelecem as relações de poder. “Este é um momento de fala e de escuta muito importante. A questão social no Brasil é antes de tudo racial. O país ainda não fez uma reparação sobre o que é ser negro aqui”, afirmou, ao acrescentar ainda a participação da população não negra no processo. “Cabe à população branca lutar contra o racismo nesta parcela da população”.

As representantes do Comitê Fiocruz Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz Cecília Barbosa e Roseli Rocha destacaram a atuação da Fiocruz na luta pela equidade de gênero e raça no ambiente institucional, na valorização da diversidade étnico-racial e na promoção dos direitos humanos. Roseli parabenizou a iniciativa da Fiocruz Brasília na criação e opção por um espaço de formação política continuada na instituição, a partir do projeto Conviver: 365 Dias de Consciência Negra. 

 

“Ao invés de dizer que não são racistas, é preciso se afirmar antirracistas. Mantenham esse compromisso de 365 dias de Consciência”, destacou Luciano.

 

Confira a galeria de fotos da apresentação dos estudantes do CEF 34 – Ceilândia

Confira a galeria de fotos da Roda de Conversa

 

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