Vitória dos movimentos sociais e da classe trabalhadora

Fernando Pinto 6 de julho de 2023


O título desta matéria traz um grito coletivo, presente nas falas dos coordenadores, professores, representantes dos movimentos sociais e egressos da primeira turma especial do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde: Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho, mais conhecida como turma especial Ceará. Eles estiveram reunidos nos dias 30 de junho e 1 de julho no Centro de Formação e Pesquisa Frei Humberto, em Fortaleza (CE), para a última atividade do curso. Foi o quarto encontro presencial de um mestrado que teve início dias antes do anúncio da Covid-19 como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em março de 2020.

 

A turma especial é fruto de parceria entre as unidades da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília, Pernambuco e Ceará, e reuniu 39 alunos com diversas formações e origens. A turma é composta por sanitaristas, enfermeiros, médicos, assistentes sociais, sociólogos, jornalistas, psicólogos, educadores físicos, geógrafos, agentes comunitários de saúde, integrantes da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMP), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de diversos outros movimentos sociais de regiões periféricas. Movimentos que trabalham com mulheres vítimas de violência, população prisional, população LGBTQIAPN+, agricultores e trabalhadores rurais, indígenas, pescadoras e marisqueiras, além de diferentes áreas do Sistema Único de Saúde (SUS), em regiões do Ceará e de Pernambuco.

 

Os desafios da turma foram muitos, começando por transformar o formato do mestrado de presencial para virtual. Coordenador do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília, integrante da Comissão Político-Pedagógica (CPP) e docente do curso, Jorge Machado lembrou esse trabalho de mudar para o formato virtual todo um curso que havia sido planejado e pensado para execução presencial. Segundo ele, foi uma tarefa assumida coletivamente, de muitos aprendizados e desafios que não impediram os alunos de seguirem suas trilhas de conhecimento. “Superamos todas as dificuldades do ensino remoto. Seguimos juntos no processo de formação continuada e de reconstrução do SUS e do país”, refletiu.

 

Para o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Hermano Castro, a educação e a formação na pandemia precisaram ser reinventadas, em especial nos territórios que ainda carecem de recursos tecnológicos. Ele se mostrou satisfeito em participar do encerramento de uma turma que enfrentou e se adaptou a tantas mudanças. “Agora vocês saem com o diploma na mão, e voltam aos seus territórios para colocar em prática todo o conhecimento adquirido com as pesquisas realizadas. É preciso ter esperança e continuar lutando contra todas as iniquidades. Com o mestrado, vocês reforçam o caminho da mudança e da esperança”, frisou. 

 

O pesquisador e coordenador do curso pela Fiocruz Brasília, André Fenner, destacou que o mestrado foi fruto do ciclo de formação dos Cursos Livres e da Especialização em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho, promovidos pela Fundação. Fenner ressaltou ainda que essa experiência foi essencial para que as três unidades (Fiocruz Brasília, Ceará e Pernambuco) pudessem desenvolver o mestrado voltado para um público e linhas de pesquisa ainda invisibilizados no país. “O mestrado foi uma aposta de mais de 10 anos em um importante trabalho desenvolvido com os movimentos sociais”, afirmou.

 

A coordenadora do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília (EGF-Brasília), Roberta Freitas, fez coro com as outras falas e sublinhou a felicidade de finalizar essa turma especial, com todos os desafios de adaptação ao ensino remoto. “Se não fosse a motivação dos 39 discentes, que se mantiveram firmes e fortes nesse processo de ensino-aprendizagem, a gente não teria chegado até aqui”, disse, e, também, incentivou os egressos a levarem para seus territórios todo o conhecimento adquirido durante o mestrado.

 

Aline Monte Gurgel, uma das coordenadoras do curso e pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco), destacou o esforço de todos em realizar um mestrado 100% virtual e em plena pandemia. Ela lembrou ainda a trajetória acadêmica, pessoal e profissional dos formandos, em especial os trabalhadores da saúde, que atuavam na ponta do SUS, e aqueles que viviam do trabalho na pesca, artesanato e campo, tão afetados pelo isolamento durante a pandemia. “Todo esse esforço ainda vai repercutir muito. Vocês farão a diferença na academia, na ciência e no território. Estão aqui ocupando um espaço construído pelo povo e para o povo. Parabéns pela vitória”, celebrou. 

 

Pesquisador em saúde pública da Fiocruz Ceará, Fernando Carneiro enfatizou que esse mestrado representa um grande encontro da reforma sanitária com a reforma agrária, e fortalece os conceitos ampliados de saúde, vida, educação e direito de sonhar. Em sua fala, fez referência ao célebre sanitarista Sergio Arouca. “O sonho do Arouca era fazer na Fiocruz uma ação com os movimentos sociais, e hoje estamos aqui formando mestres oriundos de vários movimentos sociais do campo, floresta e águas. Arouca certamente ficaria muito feliz em vivenciar essa formatura”, concluiu.

 

O diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), Marcos Menezes, destacou que o mestrado proporcionou a construção participativa de um diálogo com a sociedade e os movimentos sociais. “A academia precisa ainda avançar muito nesse diálogo, e o trabalho realizado por vocês é um marco nesse movimento. Agora é chegada a hora de colocar as pesquisas de vocês em prática nos territórios. Os resultados dos trabalhos defendidos nesse mestrado precisam ir além das paredes das salas de aula”, encorajou.

 

Para Kátia Souto, uma das docentes do mestrado, o curso descortinou a possibilidade de construir um novo Brasil, de forma coletiva e social, com trocas de saberes e práticas. A médica e educadora popular Vera Dantas, também docente do mestrado, reforçou a importância de que todos continuem nessa luta por um SUS com mais equidade e uma sociedade mais justa. “A Fiocruz tem a ousadia de acreditar nos povos do campo, floresta e águas, e investe na construção de pesquisadores de movimentos sociais”, enfatizou.

 

De acordo com Gislei Knierim, pesquisadora do PSAT e integrante da CPP do curso, é preciso agora sistematizar todo o conhecimento construído coletivamente pelos alunos durante o mestrado. “Temos que registrar e disseminar essa memória, mostrar essa ciência comprometida com a transformação social, presente em todos os projetos e produtos apresentados pela turma”, afirmou. Enfermeira e professora do curso, Jacinta Senna Silva definiu o mestrado como um ato de resistência. “Cada mestre que finalizou esse ciclo tem a missão agora de levar todo o conhecimento para o território e propagar os aprendizados adquiridos durante o curso. Precisamos construir novos processos dialógicos em nossos territórios”, salientou. 

 

Também presente no ato de encerramento do curso, a secretária de Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará, Sandra Monteiro, comentou a importância dos novos mestres para o país. “É preciso continuar avançando no diálogo entre os saberes populares e científicos. É nossa tarefa perpetuar esse aprendizado”, pontuou. Já a dirigente do MST Ceará, Keila Mendes, lembrou que o recebimento do diploma não deve ser visto como um final. “É o início de uma caminhada pela busca de mais conhecimento para a defesa da democracia e dos nossos territórios”, finalizou.

 

Com a palavra, os novos mestres

Para Leandro Araújo da Costa, médico integrante da RNMP, os mais de dois anos do curso foram trilhados com muitos desafios e aprendizados, além da resistência. “Resistimos àqueles que tentaram nos calar, intimidar e matar”, disse, fazendo referência aos obstáculos encontrados no enfrentamento da pandemia de Covid-19. “Hoje temos reunidos aqui homens e mulheres, negros e negras da periferia, do campo, da floresta e das águas, pessoas que resistiram e ultrapassaram esse momento da história. Os filhos da classe trabalhadora também estudam e levam conhecimento para o território”, apontou, ao reforçar que o compromisso com o SUS tem que ser permanente e contínuo. “Companheiros e companheiras, não desanimem, hoje é só o começo de uma grande caminhada de luta e mudança no território. A gente vai continuar sonhando, a nossa luta não pode parar, seguimos firmes e fortes na reconstrução da nossa democracia”. 

 

Alfabetizada apenas aos 11 anos de idade, Ana Regina Barbosa, hoje técnica em enfermagem, graduada em serviço social, especialista em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho, e agente comunitária de saúde de Fortaleza (CE), demonstrou toda a sua felicidade ao dizer, orgulhosa, que só chegou ao mestrado por acreditar nos estudos e em um futuro melhor. Mulher preta, filha de pais semianalfabetos e oriunda do interior do Maranhão, foi a primeira da família a concluir uma graduação e hoje é a única com o título de mestre. “Desejo mais espaços de inclusão e que a Fiocruz faça esse processo chegar a todos os territórios inviabilizados do nosso Brasil”, disse, expressando seu desejo de seguir como fonte inspiradora para seus familiares e comunidade. “Que meu legado na trilha da educação sirva como inspiração para muitas outras ‘Anas’ que estão inviabilizadas nas periferias do nosso país”.

 

Maria da Conceição Paiva de Santana, carinhosamente chamada de Solô pelos colegas de turma, também falou com orgulho do seu processo de superação durante o curso. Socióloga de formação, no alto dos seus 65 anos, enumerou os desafios de sobreviver a uma pandemia, como as desigualdades, o isolamento e a solidão. “Tive um medo profundo quando me deparei sozinha em casa tendo que reaprender a trabalhar e estudar remotamente, além de lidar com todas as dores das perdas de conhecidos”, disse. “Fomos resilientes e sobrevivemos a todas as mazelas impostas nos últimos anos”, completou, emocionada, lembrando sua origem – mulher preta, pobre, filha da classe trabalhadora, nascida na periferia do Recife, a primeira a fazer uma graduação na família e hoje mestre em políticas públicas pela Fiocruz. “Meu desejo é que outras pessoas, em outros territórios periféricos como o meu, possam vivenciar todo essa experiência do mestrado”, concluiu.

 

“O agricultor virou mestre”. Foi assim que o dirigente do MST Ceará, no município de Independência, João Paulo Pereira Alves, iniciou sua fala. Sua trajetória acadêmica inclui um curso técnico em 2012, na Escola Politécnica da Fiocruz, no Rio de Janeiro, a graduação em gestão ambiental, e o Curso Livre de Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho. “De sete irmãos sou o único com graduação e hoje o primeiro de toda a família com título de mestre. Sou grato a todos os parceiros que acreditam no coletivo e na transformação do território”, destacou o agricultor de 30 anos. Esse mestrado da Fiocruz colocou em evidência a diversidade do SUS e dos territórios, em um período em que a ciência se mostrava fundamental e, ao mesmo tempo, era tão atacada pelo negacionismo. “Sobrevivemos a tudo isso e conseguimos realizar nossas pesquisas em nossos territórios. Somos filhos de assentados e analfabetos que acreditamos que na educação, vamos romper as cercas que nos limitam e subir os degraus; vamos construir uma sociedade mais justa e igualitária. Que possamos ser multiplicadores dessa potência em nossos territórios, na defesa da terra, da educação e do SUS”, sintetizou João Paulo.

 

Aula da saudade

Na ocasião, os formandos tiveram uma última aula do curso, ministrada por Zelma Madeira, assistente social, socióloga, coordenadora do Laboratório Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidade, Gênero e Família da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e atual secretária da Igualdade Racial do Ceará. Ela dividiu a fala com o historiador, egresso do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da EGF-Brasília e diretor do Departamento de Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, Andrey Lemos.

 

Eles abordaram o racismo estrutural, as desigualdades persistentes e a luta pela equidade, em especial no mundo acadêmico e nas pesquisas. Zelma comentou os desafios enfrentados pela população negra durante a pandemia de Covid-19, criticando as instituições e organizações quando se trata do serviço social e do acolhimento da pessoa negra. A secretária reforçou a necessidade de políticas públicas de promoção da igualdade racial e de investimentos em ações afirmativas. “O povo negro clama por políticas públicas efetivas”, enfatizou. Segundo ela, é preciso desmontar a estrutura criada pelo racismo, inclusive dentro do SUS. “O passado da escravidão, infelizmente, não é passado; ainda é o presente”, afirmou.

 

Segundo Andrey, para construir a saúde coletiva que sonhamos, é preciso um olhar voltado para a ancestralidade dos povos do campo, floresta e águas. “Nós, que amamos e almejamos o fortalecimento do SUS, precisamos pensar e fazer saúde para cada pessoa a partir da sua realidade e trajetória, por isso a importância de programas como esse do mestrado profissional”, disse. “Só com a coletividade se produz bem-estar e saúde”, finalizou.

 

A atividade de encerramento do curso contou ainda com a exposição das produções acadêmicas da turma – os caminhos percorridos e as lições aprendidas no mestrado; mostra de vídeos; rodas de conversa; momentos culturais e de confraternização. Estiveram presentes pesquisadores da Fiocruz Brasília, Ceará e Pernambuco, parlamentares, representantes do Ministério da Saúde, do Governo do Estado do Ceará e de diversas associações, coletivos e movimentos sociais, além de docentes, orientadores, familiares e amigos dos novos mestres.

 

Alguns deles já foram entrevistados em nossa coluna semanal de divulgação científica “Fala aê, mestre”, que pode ser conferida aqui

 

Confira aqui as fotos das atividades

Fotos: Fernando Pinto / Fiocruz Brasília