Por Fernanda Marques e Nathállia Gameiro
Neste final de semana, o coletivo brasiliense Distrito Drag, em parceria com a Fiocruz Brasília, realizou um encontro sobre a saúde integral da população LGBTQIA+. O primeiro dia da oficina integrativa foi neste sábado (20/3) e contou com a participação de mais de 30 integrantes de movimentos, coletivos, ativistas e pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais gêneros e sexualidades.
“Estamos aqui para pensar o que diz respeito à nossa comunidade e aos nossos direitos, além de oferecer informações que possam ser difundidas. Notamos avanços com a criação da Política Nacional de Saúde LGBT+, mas sua implementação ainda é um grande desafio”, afirmou o integrante do coletivo Distrito Drag Erivan Hilário, intérprete da drag queen Ruth Venceremos.
Para Denise Oliveira, vice-diretora da Fiocruz Brasília, há muitos anos o Brasil enfrenta intolerâncias sociais e raciais que aprisionam muitas pessoas e que só podem ser superadas com iniciativas como essa oficina. “A única maneira de superar é nos fortalecermos nesse processo de cura da humanidade, do mundo. O evento pode e deve contribuir para que a gente consiga fortalecer e fazer o SUS ser mais inclusivo. Estou feliz em participar do encontro, como pesquisadora, mulher e negra e como alguém que luta para superar todas essas iniquidades que a sociedade brasileira tem”, destacou durante a abertura do evento.
A deputada federal Érika Kokay lembrou que o Sistema Único de Saúde (SUS) é um patrimônio da sociedade e constitui uma política de integração de todo o Brasil, um país diverso, continental e desigual, com especificidades da população que foram invisibilizadas pela lógica patriarcal, racista e LGBTfóbica. “O SUS tem um caráter universal, mas também de equidade. Temos muitas identidades e é preciso que o sistema de saúde possa dialogar com essa diversidade, reconhecendo que há uma desigualdade e uma discriminação estruturantes no Brasil, que perpassam as relações sociais. O SUS precisa ser cuidado todos os dias”, afirmou Kokay, que lembrou também a crise sanitária sem precedentes que o mundo enfrenta há pelo menos um ano, com a pandemia de Covid-19. Para ela, a crise sanitária carrega uma crise social e econômica, que aponta para a importância do SUS e a necessidade de termos políticas públicas de qualidade.
A pandemia também foi citada pelo pesquisador Osvaldo Bonetti, do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília, ao comentar o trabalho da Fiocruz, instituição que integra o SUS. “A Fiocruz é uma instituição de 120 anos que está atuando para garantir vacina para o povo brasileiro, e que também produz conhecimento, ciência e saúde defendendo o projeto da reforma sanitária, que é um sistema de saúde universal e para todos, com participação social e com o reconhecimento do outro na sua diversidade”, ressaltou.
Para Osvaldo, a Fundação busca o respeito à diversidade e promove ações que contribuam para que a população LGBTQIA+ seja tratada com dignidade, de modo a não perpetuar as opressões sociais já existentes. “Com a pandemia, a Fiocruz redobrou os esforços, fortalecendo o diálogo com a sociedade e os movimentos que mais precisam de nós dentro desse processo de enfrentamento da desigualdade, e fazendo cumprir o legado da saúde como democracia”, concluiu.
O SUS é para todos
O que é saúde para você? Com esta pergunta, Gislei Siqueira, pesquisadora da Fiocruz Brasília, iniciou sua fala sobre a importância do Sistema Único de Saúde. Qualidade de vida, cuidado com a mente e o corpo, acesso à cultura, alimentação, trabalho e lazer foram algumas respostas dos participantes.
A pesquisadora afirmou que a saúde é uma condição para ter vida nos territórios em que moramos, e perpassa várias dimensões: mental, emocional, espiritual, afetiva e ambiental. “Eu tenho mais ou menos saúde de acordo com as condições de vida que eu tenho. Se eu tenho moradia, alimentação, trabalho, lazer, alegria e renda, se posso vivenciar relações sociais, e se não passo por situações de preconceito, isso tudo são condições essenciais para a saúde. Saúde e doença não são antagônicas, elas andam juntas”, destacou.
Gislei relembrou a história do surgimento do SUS. Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde contribuiu para o início do debate e o reconhecimento de que era preciso cuidar da saúde de toda a população, independentemente de raça, gênero, cor ou comunidade à qual pertença. No entanto, somente em 1988 o SUS foi criado pela Constituição Federal Brasileira, determinando que a saúde é dever do Estado e direito do cidadão. “É uma conquista recente, de pouco mais de 30 anos, quando, do outro lado, temos mais de 500 anos de desigualdades e explorações. O SUS é uma grande conquista e uma ferramenta de luta”, ressaltou. Segundo a pesquisadora, muitos ainda reduzem o Sistema a serviços de saúde que tratam de doenças, como hospitais e unidades básicas de saúde, mas o SUS é muito mais amplo. Ele está no controle da qualidade dos alimentos e da água que consumimos, nos espaços que frequentamos, permeia vários lugares e faz parte do nosso dia a dia.
Para ela, a população precisa se organizar para garantir coletivamente o direito ao cuidado de todos, e enfrentar as contradições que ainda existem no sistema público de saúde. Gislei defende que o SUS deve estar junto do território e compreender como o processo de trabalho e a reprodução da vida acontecem, construindo saúde com quem vive o dia a dia do território. “Se a gente se organiza e se fortalece, conseguimos aos poucos mudar e construir um sistema melhor. Temos capacidade para lutar contra coisas que nos agridem, nos adoecem e nos atingem afetiva, espiritual e mentalmente”, disse.
Os participantes da oficina contaram suas experiências com o SUS e ressaltaram que é preciso defendê-lo. Foi o caso de Guiller Augusto, que afirmou que, se não tivesse acesso a um sistema de saúde gratuito, não estaria vivo. “É um direito básico nosso! Tem as falhas, mas garante saúde e qualidade de vida. Se não tivéssemos acesso ao SUS, o que seria de nós? Sem o SUS, a gente não é nada! Independentemente da nossa experiência, temos que defendê-lo”, destacou.
Política Nacional de Saúde Integral
A oficina continuou no domingo (21/3) com um debate sobre a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O historiador e presidente da União Nacional LGBT (UNALGBT), Andrey Lemos, mestre em Políticas Públicas em Saúde pela Fiocruz Brasília, fez uma exposição sobre o tema, lembrando a longa trajetória de lutas que possibilitaram que, hoje, tenhamos um debate sobre saúde integral da população LGBTQIA+. Andrey defendeu também que as diversas lutas – contra o racismo, o patriarcado, a LGBTfobia etc. – precisam estar integradas. E argumentou, ainda, que o debate sobre a saúde da população LGBTQIA+ não pode ficar restrito à prevenção do HIV/Aids.
O historiador comentou o período de reconstrução e compreensão da saúde como bem-estar após a Segunda Guerra Mundial, a opressão da ditadura militar e a resistência da Reforma Sanitária. “Antes do SUS, só era atendido nos serviços públicos de saúde quem tinha carteira assinada. O movimento da Reforma Sanitária reivindica o direito à saúde com universalidade, equidade e integralidade, o que se torna uma conquista que tem como um marco a Constituição de 1988”, afirmou Andrey. Entre os marcos internacionais, ele citou a Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, em que diferentes grupos sociais estiveram representados.
De acordo com Andrey, por volta dessa época, no Brasil, foram criadas diversas secretarias no governo federal e iniciou-se um esforço transversal que compreendia como certas populações tinham seus direitos negligenciados e requeriam ações afirmativas. Em 2004, foi criado um grupo de trabalho para construir uma política de saúde integral da população LGBT e, segundo o historiador, em 2006, a proposta da política já estava pronta, mas encontrou barreiras para ser publicada – a portaria que instituiu a política só foi publicada em 2011. Nesse intervalo, o movimento se fortaleceu, por exemplo, com a conquista de representação pelo segmento LGBT no Conselho Nacional de Saúde (CNS). A participação social tem sido fundamental para a garantia de direitos como o uso do nome social e o acesso ao chamado processo transexualizador no SUS, embora a LGBTfobia institucional e outros importantes obstáculos ainda persistam.
A transexualidade ainda ser tratada como doença, como uma forma, dentro do contexto político-cultural brasileiro, de garantir o acesso a serviços no SUS, foi um problema bastante discutido no segundo dia da oficina. Conforme os participantes, os ambulatórios especializados devem servir para uma melhor assistência à população LGBTQIA+ em suas especificidades, e nunca como um mecanismo de reduzir, desumanizar e segregar. “Somos o país que mais mata transexuais. Somos um país que ainda faz piada da população LGBTQIA+, que a recusa na escola e no mundo do trabalho. Precisamos ouvir as vozes LGBTQIA+, precisamos amadurecer o debate e brigar por representatividade, não só por visibilidade nas mídias sociais, mas por espaço nos lugares onde são tomadas as decisões, para que a diversidade seja reconhecida e valorizada, com equidade de direitos e oportunidades de vida”, advertiu Andrey.
Ao final da atividade de domingo, os participantes ocuparam suas telas com cartazes em defesa do SUS e da equidade.
Os dois dias da oficina tiveram ainda performances de drag queens que falaram sobre resistência, preconceito, aceitação e as vidas perdidas com a pandemia de Covid-19. Confira o evento completo no canal do Distrito Drag no YouTube: