Comunicação como direito é debatida durante evento

Nathállia Gameiro 10 de novembro de 2020


Nathállia Gameiro

 

“Democracia não é só votos, é acesso a direitos. Saúde é democracia, comunicação é democracia”. Com esta frase, o diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), Rodrigo Murtinho, iniciou o debate de encerramento do Seminário Comemorativo de 20 Anos do Projeto Integralidade: Saberes e Práticas no Cotidiano das Instituições de Saúde. O evento foi realizado online, entre os dias 3 e 6 de novembro, e registrou mais de 1300 acessos nas atividades como ágoras, minicursos e mesas de debate.

 

A importância do direito à comunicação e à saúde foram destaques no último debate. Murtinho lembrou que o Relatório MacBride, aprovado em 1980 pela Unesco, é um documento referencial que debate o direito à comunicação no mundo. À época, quatro grandes agências nacionais concentravam o fluxo de informação destinada ao público mundial. Em um questionamento desse monopólio, foi criada uma comissão presidida pelo irlandês Seán MacBride para pesquisar a concentração do fluxo de informação no mundo, o primeiro grande estudo da comunicação mundial.

 

O relatório questionava a exclusão midiática de comunidades e regiões, e apontou a necessidade de se construir uma nova ordem mundial da comunicação a partir de alguns preceitos como respeito à cultura dos estados nacionais e à diversidade da informação, livre expressão, participação e direito de comunicar. “Questões que hoje falamos a todo momento, mas que naquela época ainda era uma novidade”, pontuou o diretor do Icict.

 

O relatório passou a influenciar debates no mundo inteiro. No Brasil, que passava pelo final da ditadura militar, o documento influenciou movimentos de jornalistas, estudantes de comunicação e a área acadêmica que começaram a estudar e contestar a concentração do fluxo de informação. De acordo com Murtinho, alguns programas de pós-graduação surgiram a partir desse debate, como na Universidade de Brasília, que fundou o primeiro programa de pós-graduação com as preocupações voltadas para as políticas de comunicação.

 

Ainda de acordo com ele, esses debates sobre os preceitos do direito à comunicação influenciaram muito o campo da saúde e foram representados nas conferências de saúde. Como por exemplo, o direito de expressão, que esteve presente no discurso de Sérgio Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde, e que se tornou um dos pilares do SUS. Para Rodrigo, na saúde, a comunicação é sinônimo de participação, direito de expressão, de construção e reivindicação de pautas, de produzir e debater as políticas de saúde a partir de realidades e grupos sociais específicos. 

 

Segundo Murtinho, quanto mais a população sentir que a comunicação é algo básico e necessário, um direito humano, mais pessoas produzirão efetivamente uma outra comunicação, mais diversa e plural, e articulada com a regulação, políticas públicas e democratização da comunicação. “Sem democratização da comunicação no Brasil, sem dar condições para o exercício do direito à comunicação, não conseguimos efetivar nenhum outro direito. No campo da saúde é um preceito fundamental, é esse direito que garante, por exemplo, a possibilidade de se fazer um controle social”, destacou o diretor do Icict.

 

Mesmo depois de 40 anos da publicação do documento, o tema é atual. Para a professora Juliana Lofego, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Acre, o cenário previsto nos anos 80 não teve muita mudança. “Os meios continuam concentrados nas mãos de empresas, hoje em dia com um pouco mais de seriedade, com privacidade dos dados e regulação, mas com a influência muito grande dos meios de comunicação e com a relação de poder das tecnologias. Assim fica difícil ter pluralidade, diversidade e democracia”, enfatizou.

 

Para ela, a infodemia e o ataque à ciência que atingem os países nos dias de hoje, mostra que é o momento de pensar, de novo, mundialmente em estratégias digitais. Um dos caminhos que a professora observa é pensar na promoção de redes de cuidado para apropriar as pessoas de ferramentas e métodos digitais para o acesso aberto às informações. “Espero que os jovens, geração que já nasceu no ambiente digital, continue com esses desafios de repensar essas ideias que estamos há 40 anos trazendo e estão mais atuais que nunca”, ressaltou.

 

O fortalecimento de redes de cuidado é uma das estratégias utilizadas pelo Hospital Sofia Feldmann, localizado na periferia de Belo Horizonte. Tatiana Coelho, representante da unidade pública, explicou que o hospital foi criado pela comunidade e sempre teve como característica a participação dos usuários nas seis linhas de cuidado implementado pela gestão.

 

Ela destaca que a comunicação é um valor interno, assim como o direito à saúde e à informação. Com a pandemia, o desafio foi migrar a comunicação com os usuários para outros canais com as demandas trazidas por eles. Assim, foram criados perfis em mídias sociais para trabalhar as pautas demandadas pelos usuários. “A comunicação sempre foi muito importante no cuidado e no acesso do usuário ao serviço de saúde”, afirmou.

 

Comunicação como bem público

Outro caminho apontado pelos profissionais para o acesso à informação e à saúde, foi fomentar redes de comunicação popular e comunitária. Muitas dessas iniciativas ajudam na coleta de doações como alimentos, água e álcool, e auxiliam ainda na higienização das ruas e produção de dados para que o Estado apoie essas populações.

 

A diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, afirmou que a quantidade de informações que a população recebe diariamente interfere na forma de compreensão. Por isso, acredita que é papel dos trabalhadores do SUS debater a comunicação e reconhecê-la como um bem público e importante para a saúde, para que seja um conhecimento de fato confiável e acessível. Para ela, essa responsabilidade também é das grandes instituições, que devem fazer com que as construções coletivas estejam atentas às evidências necessárias e ao conhecimento, em um momento em que nem todos têm acesso às tecnologias e à comunicação digital, especialmente em territórios vulneráveis e em médias e pequenas cidades.

 

Fabiana destacou as iniciativas da Fiocruz para a democratização do conhecimento e do uso da tecnologia para a divulgação científica, para que a informação de qualidade chegue à população na perspectiva da promoção da saúde. Uma dessas frentes é a comunicação popular, como o projeto Se liga no Corona, que garanta o debate e a escuta das necessidades das comunidades e a comunicação como estratégica para viabilizar o diálogo. Outro exemplo citado pela diretora são as ações desenvolvidas pela Fiocruz Brasília com os comunicadores populares do Distrito Federal durante a pandemia, como rodas de conversa e os produtos desenvolvidos para tirar dúvidas sobre o novo coronavírus. “A ativação de redes e construção de estratégias efetivas são essenciais para que o conhecimento possa ser compartilhado na comunidade”, afirmou.

 

Já para a coordenadora do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis) e idealizadora dos seminários do Projeto Integralidade, Roseni Pinheiro, a comunicação popular empodera as comunidades e mostra que é um direito de todos. Ela destaca as rádios comunitárias como espaços de participação e que cobrem todo o território nacional. “Comunicação, informação e educação é a tríade que queremos para fortalecer e caminhar na mesma direção”, afirmou ao falar dos objetivos do Lappis, destacando também a integralidade e fortalecimento do SUS.

 

Este debate e as outras atividades do evento podem ser assistidos no canal da Fiocruz Brasília no Youtube.