Fala aê, mestre: cuidado à saúde das trabalhadoras sexuais

Fernanda Marques 2 de janeiro de 2023


Identificar elementos orientadores para uma política de cuidado à saúde das trabalhadoras sexuais: esta é uma das contribuições da pesquisa de mestrado da psicóloga Clarissa Ale Passos, egressa da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Aluna da turma especial Saúde, Ambiente e Trabalho do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde, Clarissa estudou a trajetória do projeto “Cuida!”, trabalho interdisciplinar e interinstitucional realizado desde o início da década de 2010 com trabalhadoras sexuais de uma periferia de Fortaleza (CE). A pesquisa se baseou na sistematização de experiências, proposta por Oscar Jara Holliday, e, a partir dessa metodologia, verificou potencialidades e desafios vivenciados pela equipe do “Cuida!”. O estudo compreendeu as diretrizes e estratégias construídas pelo projeto ao longo dos anos e, ao compartilhar esses achados, pode ter como desdobramento a articulação de parceiros para o fortalecimento das ações. Nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”, Clarissa destaca alguns dos principais resultados da pesquisa, que aponta para a necessidade de atenção integral à saúde das trabalhadoras sexuais, em vez de uma assistência focada somente nas infecções sexualmente transmissíveis.

 

As duas primeiras imagens que ilustram a entrevista são do arquivo pessoal de Clarissa e representam atividades desenvolvidas pelo “Cuida!”. A dinâmica chamada “Mete a Colher” faz uma crítica ao silenciamento da violência contra a mulher, expressa no ditado popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Com o auxílio da colher, são retirados de dentro da panela cartões com situações de violência de gênero, que colocam em discussão formas de lidar com o problema e possibilitam informar sobre direitos e serviços para atendimento e denúncia. A segunda imagem mostra o jogo “Cuida Show”, que combina a clássica brincadeira de abre-fecha com o imaginário de um programa de auditório e, a partir de um conjunto de perguntas, dispara diálogos sobre drogas e sexualidade, entre outros temas. Já a terceira imagem representa uma ação de outro coletivo, o Tulipas do Cerrado, que promove a “Tenda das monas, manas e minas pop rua”, uma estrutura de acolhimento, geralmente montada em local público em alguma data simbólica, como o dia da mulher ou o dia da família, onde são realizadas rodas de conversa sobre direitos humanos e redução de danos, além da distribuição de kits e lanche. Na dissertação, Clarissa cita atividades como essa para exemplificar iniciativas similares às do “Cuida!” que ocorrem em outras regiões do país.

 

A partir da sua pesquisa, qual o estado da arte sobre cuidado em saúde e prostituição no Brasil?

Clarissa Ale Passos: A produção acadêmica da área da saúde sobre prostituição ainda aborda majoritariamente a relação entre esta e as infecções sexualmente transmissíveis. Existem diversas ações de cuidado realizadas por e para trabalhadoras sexuais em diferentes regiões do país. Essas experiências merecem ser sistematizadas e compartilhadas, pois têm muito a contribuir para esse campo de conhecimento. Destaco as ações do Coletivo Tulipas do Cerrado (DF), do CIPMAC (PB) e do Clã das Lobas (MG) como exemplos de ações de cuidado muito efetivas e inovadoras, mas existem muitas outras.

 

O que é o “Cuida!”? Por que escolheu estudar essa ação?

Clarissa Ale Passos: O “Cuida!” é um coletivo de pessoas e instituições que, desde 2010, realiza ações de cuidado voltadas às trabalhadoras sexuais da Barra do Ceará, um bairro histórico da periferia de Fortaleza (CE). Faço parte desse coletivo desde 2016 e decidi estudar essa ação com a intenção de registrar e organizar os aprendizados que tivemos ao longo dos anos, propiciando o compartilhamento desses conhecimentos.

 

Quem participa do “Cuida!”? Como os/as participantes veem a experiência?

Clarissa Ale Passos: Além das próprias trabalhadoras sexuais, participam trabalhadoras e trabalhadores da Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) Lineu Jucá e do Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA) Barra do Ceará, bem como professores, estudantes e pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre Drogas (NUCED) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Além disso, já colaboraram com as ações diversas outras instituições, como o Centro Universitário Fametro (Unifametro), o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Para os participantes, os aspectos fundamentais da experiência estão geralmente ligados ao caráter criativo e inovador das metodologias utilizadas, à sensibilidade implícita na abordagem do público e à relação da experiência com as políticas públicas, seja no tensionamento delas, seja na inclusão dos serviços públicos do território nas ações.

 

De acordo com seus resultados, quais as principais potencialidades do “Cuida!”?

Clarissa Ale Passos: Entre as principais potencialidades, podemos destacar a criticidade dos participantes na construção de um cuidado ético que faça sentido para todos os envolvidos. Além disso, com a sistematização da experiência do “Cuida!”, foi possível perceber a importância da construção de uma atuação territorializada, intersetorial e transversal.

 

E os principais desafios?

Clarissa Ale Passos: Os desafios dizem respeito, principalmente, ao fato de que o “Cuida!” não é uma ação institucionalizada por nenhuma das organizações parceiras, o que, com bastante frequência, comprometeu a realização e o financiamento das atividades pela falta de insumos e, às vezes, também de profissionais. Compreendemos isso como um reflexo da ausência de uma política de cuidado integral às trabalhadoras sexuais.

 

Com base nas suas conclusões, quais seriam os elementos orientadores para uma política de cuidado à saúde de trabalhadoras sexuais?

Clarissa Ale Passos: Reforçamos que uma política pública nesse sentido deve se orientar pelos aspectos da territorialidade, intersetorialidade e transversalidade na construção de um cuidado ético, tendo como base as práticas da educação e participação popular em saúde.

 

Clarissa Ale Passos é autora da dissertação “Prostituição – trajetórias de vida e trabalho: uma experiência de cuidado com trabalhadoras sexuais em Fortaleza/CE”, defendida em 12 de setembro de 2022, com orientação da professora Jacinta de Fátima Senna da Silva.