Pessoas em situação de vulnerabilidade: quando o isolamento é consequência das desigualdades

Fernanda Marques 2 de abril de 2020


Fernanda Marques

 

 

A pandemia de coronavírus tem se mostrado dolorosa, mas também um período de aprendizados. “Ao dar visibilidade a muitos constrangimentos, ela é uma oportunidade de encarar nossas contradições de frente. Vamos ter que aprender a lidar com as situações”. A provocação foi feita pelo psicólogo sanitarista Marcelo Pedra, pesquisador da Fiocruz Brasília, durante a terceira edição do Conexão Fiocruz Brasília, que abordou o tema “O novo coronavírus e as populações em situação de vulnerabilidade e de rua”, com transmissão ao vivo no YouTube e participação do público por chat. “Mais do que nunca, é preciso diminuir a distância entre essas populações e o SUS. É preciso compreender as particularidades dessas pessoas, e isso só é possível quando se vai até elas para conhecer suas necessidades no território onde vivem”, completou a assistente social Carolina Sampaio, da equipe do Consultório na Rua da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal.

 

 

Os Consultórios na Rua são uma política pública do SUS, instituída em 2012, a partir da necessidade de cuidar de pessoas historicamente excluídas dos serviços de saúde. Necessidade que volta à tona neste momento, em que tanto se repercute o isolamento social como estratégia de prevenção ao coronavírus. “Estamos falando de um grupo populacional que representa um isolamento que é consequência da desigualdade socioeconômica brasileira. As populações em situação de vulnerabilidade devem ser prioridade nas ações da saúde pública”, afirmou a diretora substituta da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira e Silva.

 

 

No contexto da pandemia, o primeiro passo para cuidar das populações em situação de rua é abrigá-las. “Longe da ideia do higienista caricatural de embelezar a cidade, precisamos abrigar para cuidar, reconhecendo que nem todos concordarão em ir para os abrigos e que será necessário também tornar a rua menos nociva para quem permanecer nela”, disse Marcelo, destacando que o movimento de estar na rua é algo muito singular, perpassando diferentes expressões de vida, morte e afetos. Outro ponto de destaque é que os abrigos não são depósitos de pessoas. “Eles devem oferecer cuidados e condições humanizadas que impeçam a disseminação do vírus”, pontuou Carolina.

 

 

Hoje, essas pessoas estão aglomeradas na rua por questão de sobrevivência, em um momento em que até o excedente da sociedade, que era doado, foi afetado pela pandemia. Elas não têm acesso às condições mínimas de se protegerem; não têm acesso nem mesmo à água. “Vivem constantemente sem a certeza da satisfação de suas necessidades mais básicas. Então, para elas, ações de cunho educativo que projetem benefícios no futuro não fazem muito sentido”, analisou Carolina, comentando também a questão do enfrentamento sem moralismos ao uso nocivo de drogas entre a população em situação de rua. Os serviços públicos, portanto, precisam estar preparados para acolher essas pessoas de forma muito concreta. “Não é filantropia ou ajuda humanitária. São serviços públicos. É um direito e, como todo direito, não foi dado, é uma conquista”, sublinhou Marcelo. “O SUS é uma riqueza que a gente tem, uma estrutura de Estado que vem se consolidando, mas sofre duros ataques”, acrescentou Carolina.

 

 

O acolhimento às populações em situação de vulnerabilidade exige a articulação entre os diversos atores do Estado (os da saúde, da saúde mental, da assistência social etc.) e das iniciativas da sociedade civil. Representante de uma delas, Hellen Cris Vaz, coordenadora social da Revista Traços, participou do 3º Conexão Fiocruz Brasília. Há quatro anos, a revista de conteúdo cultural é ofertada em bares e restaurantes de Brasília por “porta-vozes da cultura”. Trata-se de pessoas em situação de rua ou de extrema vulnerabilidade que, “por meio do projeto, têm assegurada mais do que uma fonte de renda, mas uma oportunidade de reconquistar dignidade, integração social, espaço de fala e autonomia”, explicou Hellen, contando que, devido à pandemia, a revista ganhou versão digital.

 

 

Iniciativas como a Revista Traços e também “os grupos da sociedade civil que vão às ruas distribuir comida, roupas e outras doações fazem um trabalho muito importante e, se possível, devem continuar fazendo, com as devidas medidas de prevenção ao coronavírus, inclusive uso de equipamentos de proteção individual”, disse Marcelo. “Mas é importante que essas ações estejam articuladas com as políticas públicas”, frisou Carolina, lembrando ainda que, neste momento, as estratégias mais eficientes são aquelas que articulam os diferentes atores no nível local. Segundo ela, “uma estratégia única não atenderá às especificidades de todos os lugares”. “Não há que se reinventar a roda: há que se aproveitar e fortalecer o que já é feito”, afirmou Marcelo.

 

 

A eficiência das políticas também está diretamente ligada às decisões baseadas em evidências científicas. Isso significa, de acordo com Marcelo, que é fundamental mapear o número de pessoas em situação de rua, quantas têm comorbidades, etc. Além das populações em situação de rua, existem diversas outras em situação de vulnerabilidade, que pode ser agravada no contexto da pandemia. Para todas, é preciso fortalecer a assistência, a alocação de recursos em saúde, a satisfação das necessidades básicas, como alimentação. “O momento nos faz refletir sobre o papel estratégico do Estado e a necessária garantia de direitos para todos. Vamos sair disso com novos problemas, mas melhores do que começamos”, concluiu.

 

 

Assista ao 3º Conexão Fiocruz Brasília