Todo brasileiro tem direito à saúde, mas não é possível que o Sistema Único de Saúde (SUS) financie excessos e abusos que comprometam o orçamento público na busca por este direito. O Programa de Direito Sanitário da Fiocruz Brasília (Prodisa) estuda a judicialização em saúde desde 2002. O termo refere-se à busca do Judiciário como alternativa para se obter um medicamento ou tratamento que não é previsto na relação nacional de medicamentos, ou tem custo alto. Dados parciais da mais recente pesquisa em andamento do grupo foram apresentados nesta quarta-feira (24/1), na Fiocruz Brasília, e trazem o que vai se constituir em um levantamento nacional da judicialização nos municípios brasileiros.
Os pesquisadores trabalharam com mais de 4 mil processos do banco de dados do Programa de Direito Sanitário da Fiocruz Brasília (referentes a 2012-2013) e coletaram também dados de mais de 8.500 processos (de 2012 a 2017) junto aos tribunais de todo o país. Ao todo, 12.620 processos foram coletados. A maioria dos dados vem da região Sudeste, com destaque para o estado de São Paulo; apenas os estados de Sergipe e Roraima não disponibilizaram dados para a pesquisa.
A maior parte dos casos é de pacientes do SUS, mas não é possível saber se a pessoa deu entrada no SUS apenas para abrir o processo judicial ou se nunca foi atendida na rede privada. Nas regiões Sul e Sudeste, a maior parte das ações é movida por escritórios e advogados privados, enquanto nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, se sobressaem os pedidos para se realizar um exame e os pedidos chegam ao Judiciário por meio de defensores públicos.
As principais argumentações são o risco de morte e a hipossuficiência, ou falta de recursos dos indivíduos. Em mais de 80% dos processos, o pedido é deferido automaticamente, e raramente trazem a comprovação da demanda e uso pelo paciente, ou mesmo o comprovante de entrega do medicamento.
Para Pedro Paulo Chrispim, do Hospital do Coração, o monitoramento desses processos judiciais é possível, mas a dificuldade de acesso inviabiliza uma coleta de dados em tempo real, então a descentralização desta captação dos dados é necessária. A coordenadora do Programa de Direito Sanitário da Fiocruz Brasília, Maria Célia Delduque, lembrou que os desafios desta pesquisa começaram na coleta e dados, pois ao mesmo tempo em que nem todos os magistrados permitiram o acesso aos livros de sentença, em alguns locais, a equipe de pesquisadores percorreu ambientes insalubres nos porões dos tribunais em busca dos dados brutos, onde não havia informatização.
Durante o evento, foi apresentado o caso específico de São Paulo, que tem atualmente 51 mil ações judiciais em atendimento, mais de 35 mil demandas administrativas e investiu em um sistema de informação específico para a coleta de dados, o S-Codes. A partir do sistema, os gestores puderam criar um índice paulista de judicialização, que consiste no número de ações judiciais a cada 10 mil habitantes. A média de processos no estado é de 3,3 mas em regiões que são consideradas polos de produção de conhecimento em saúde, como Ribeirão Preto, Barretos e Marília, por exemplo, existe uma média de 11 processos para cada dez mil habitantes – e, na grande São Paulo, a média é de 0,77.
A maior judicialização nestes locais pode ter relação ao maior acesso à Justiça, segundo Paula Sue Facundo de Siqueira, da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. Ela apresentou um perfil da judicialização em São Paulo, que segue o padrão apresentado na pesquisa nacional: 58% das ações judiciais vem da prescrição de um médico particular, 65% é referente a medicamentos, 78% deles não são padronizados no SUS, 2% são produtos importados sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e, em 22% das ações, se pede uma marca comercial específica do medicamento. É interessante notar também que 22% dos medicamentos judicializados já são fornecidos regularmente pelo SUS. Os pesquisadores observaram ainda que, nas decisões judiciais, não são consideradas as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e não se evidenciam as necessidades epidemiológicas regionais.
“Quem procura a judicialização, geralmente é um paciente atendido pelo sistema privado de saúde, que vem buscar apoio do SUS quando este sistema não lhe atende, já que, em geral, o profissional do SUS não prescreve algo fora do arsenal do sistema e não coberto pelo SUS”, afirmou Sue.
Ao longo da pesquisa, foram observadas fraudes em vários processos, tais como a alteração no Código Internacional da Doença a que se refere o pedido durante os trâmites processuais, bem como uso de medicamentos em fase de pesquisa e pedidos de auxílio inclusive para a saúde de animais domésticos, ou procedimentos estéticos. A previsão é que, com o auxílio do sistema S-Codes desenvolvido em São Paulo, se forme um observatório da judicialização que apoie os gestores estaduais e municipais e possibilite monitorar o tema ao longo do tempo.
Em andamento
A pesquisa Judicialização da Política Pública de Saúde nos Municípios Brasileiros: um retrato nacional foi financiada pelo Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS) e está em fase de análise dos dados pela Fiocruz Brasília, por meio do Prodisa, em parceria com o Hospital do Coração (HCor) e Ministério da Saúde. Em breve serão divulgados os resultados completos, bem como uma outra pesquisa em andamento sobre o tema, contemplando os 27 estados brasileiros, realizada com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, em parceria com as universidades federais do Maranhão, Pará e Rio de Janeiro, além da Unisinos.