Saúde mental em emergências humanitárias e a experiência do projeto “Cuidado no Caminho das Águas”

Fiocruz Brasília 10 de outubro de 2025


Bruna Viana (Nusmad/Fiocruz Brasília)

No Dia Mundial da Saúde Mental, o projeto “Cuidado no Caminho das Águas” evidencia a importância de cuidar também de quem cuidou das vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.

“Foi a primeira vez que conseguimos falar sobre o que vivemos. Na verdade, até então, parecia que eu não tinha passado também pela enchente”, conta Roberta Lesh, trabalhadora da Casa da Mulher, centro de acolhimento para mulheres vítimas de violência em Barra do Ribeiro (RS), sobre a formação “Atenção Psicossocial em Desastre Socioambiental: o Cuidado no Caminho das Águas”.

O projeto é desenvolvido pela Fiocruz Brasília, por meio do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Nusmad), pelo Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (Desmad/SAES/MS), em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde do RS e o Fórum Gaúcho de Saúde Mental. O propósito é oferecer cuidado, formação, troca de experiencias e direito à memória a trabalhadores, gestores, usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e redes intersetoriais e lideranças comunitárias que atuaram ou foram afetados pelas enchentes que atingiram sem precedentes o Rio Grande do Sul em 2024.

Neste Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado em 10 de outubro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) convida todos os países a lembrar que “não existe saúde, sem saúde mental”, destacando o tema “Saúde mental em emergências humanitárias”. O dia vem como um chamado global para reconhecer e apoiar o bem-estar emocional de pessoas e comunidades afetadas por desastres, conflitos e outras crises, por meio do fortalecimento de redes e do saber comunitário.  

Reconhecendo as marcas deixadas nas cidades por onde as águas das enchentes passaram, o projeto se insere no contexto da data, propondo um caminho de cuidado, a partir das experiências vividas em cada comunidade.

Reconhecer, cuidar e preparar

Durante as enchentes, o prédio da Casa da Mulher foi invadido pela água e precisou ser fechado. O acolhimento foi transferido para o antigo fórum da cidade, onde Roberta e as colegas passaram a atender vítimas das enchentes em abrigos e até mesmo nas residências de pessoas da cidade, que acolhiam pessoas que haviam ficado desabrigadas.

“Vivemos muito no automático. Trabalhávamos quase sem parar, das seis da manhã às nove da noite, e às vezes virando a noite”, relembra. Além dos atendimentos psicossociais, a equipe também organizou um centro de doações e chegou a montar 150 cestas básicas por dia.

“Não estávamos preparados para o que vivemos. Com os recursos que tínhamos, montamos um centro de distribuição de roupas e alimentos das doações que chegavam à Prefeitura, para que a população pudesse receber o mais rápido possível”.

Roberta conta que ela e demais colegas da Casa da Mulher se envolveram tanto no cuidado e suporte às vítimas que não se reconheciam também como parte afetada pela tragédia.

“Era como se nós, trabalhadoras, não estivéssemos vivendo tudo aquilo. Minha colega saía e voltava de barco para casa, mas não deixava de trabalhar. Eu não lembrava que também estava sofrendo”.

A Casa da Mulher fica em frente à Casa Rosa, local onde viveu a primeira parteira do município, Dona Rosa. A facilitadora do grupo de municípios que inclui Barra do Ribeiro, Fatima Fischer comentou o simbolismo do local para a cidade. “Muito simbólico estarmos na Casa da Mulher, de mulheres parideiras, quantas histórias ali estão. Na enchente… no portão da Casa das Mulheres, peixes habitaram, no Caminho das águas e ali estiveram mulheres num lugar protegido em construções sólidas… Acho que nosso curso está instituindo construções sólidas com espaço para que até os peixes possam viver”.

A proposta do Cuidado no Caminho das Águas é abrir espaços de escuta, acolhimento e validação de saberes a partir de experiências como a de Roberta e de outros trabalhadores, lideranças comunitárias, gestores e pessoas que estiveram à frente do cuidado durante o desastre no estado.

Por meio de oficinas territoriais descentralizadas, rodas de conversa e comunidade virtual, o curso de atualização está estruturado em 120 horas, sendo 40 horas presenciais e 80 horas virtuais. A iniciativa vem possibilitando espaços de troca, cuidado e reconstrução de projetos para cerca de 1.300 pessoas de 138 municípios gaúchos, tendo como mote as experiências de quem vivenciou o desastre socioambiental, entendendo que quem cuida também precisa ser cuidado e que os usuários dos serviços têm muito o que nos ensinar sobre como devemos cuidar. 

A formação também propõe desenvolver planos de ação local voltados para atenção psicossocial em situações de desastre socioambiental, tomando como base os princípios e as diretrizes da Reforma Psiquiátrica em curso no SUS e da luta antimanicomial.

Para Roberta, o curso tem sido um ponto de virada: “Tem sido importante para que a gente se sinta mais preparada para novos episódios, porque nesse primeiro não estávamos. O curso tem nos preparados para o acolhimento”.

As atividades, conduzidas com metodologia ativa e expressões artísticas — como música, costura, pintura e teatro —, também darão origem a um minidocumentário que registra as experiências e os aprendizados vividos nos territórios.