Iris Pacheco (Psat/Fiocruz Brasília)
Durante os meses de junho a agosto, foram realizados os três módulos do Curso de Formação-ação: promoção da saúde e participação social, nos Pólos de Mossoró no Rio Grande do Norte e Codó no Maranhão. O objetivo é promover e fortalecer iniciativas de saúde nos territórios por meio da combinação de conhecimentos teóricos e práticos em saúde.
Entre os temas abordados ao longo das formações presenciais, podemos citar o estudo sobre Determinação Social da Saúde e Modelo de Desenvolvimento, os aspectos e instrumentos da comunicação popular e sua aplicação para as nossas ações em saúde nas comunidades, além do debate sobre cultura, arte e cartografia social como instrumento de promoção à saúde. São momentos que acontecem conectados com as vivências, os encontros e diálogos do Tempo Comunidade dos/as educandos(as) em suas comunidades.
De acordo com Gislei Knierim, pesquisadora do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (Psat) da Fiocruz Brasília e coordenadora de Formação do Projeto, os critérios de escolha dos territórios foram direcionados para que a iniciativa ocorresse em locais do interior, mais afastado da capital, para reconhecer, fomentar e articular as experiências. “O que a gente quer é cada vez mais aproximar a sociedade civil com o Sistema Único de Saúde (SUS), com as práticas dos serviços para fortalecer o SUS no cuidado com nosso povo. Por a ideia desses movimentos serem protagonistas das suas práticas de cuidados nos Territórios.”
Do ponto de vista metodológico, a organização interna do curso foi realizada com a divisão dos Núcleos de Aprendizagem e Ensino (NAE), como uma estratégia pedagógica que busca ampliar a participação, organicidade e a autonomia do corpo discente dos processos de educação. Nesta experiência contamos com cinco atividades centrais, são elas: Coordenação, Zelo pelo ambiente e relatoria, Animação e cultura, Mística (que é um momento de arte e cultura para propor uma reflexão interseccional entre a teoria e a prática), e por fim, o Cuidado como prática coletiva.
Além disso, o espaço de Formação-ação é um ambiente vivo e em permanente construção, logo, está atento às necessidades deste coletivo, permitindo dialogar outros temas como ocorreu no Pólo de Mossoró, quando a turma colocou em pauta os impactos da desinformação e da fake news nos Territórios, apontando diversos desafios que são enfrentados cotidianamente em nossa sociedade.
Desta forma, cada Pólo chega ao III e último módulo do Curso com a possibilidade de compartilhar histórias, vivências e receitas na Feira de Sabores e Saberes, permitindo que cada um ali esteja mais próximo possível da realidade do outro, mas também compreenda que esse coletivo comunga de saberes e direitos equânime quando o tema é saúde e bem viver.
Segundo Sandra Almeida, da Assessoria do Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, “esse projeto é muito importante porque prima pela escuta ativa dos movimentos sociais. É a partir do Território que realizamos o reconhecimento das práticas de saúde que devem ser incorporadas dentro do SUS. Então, hoje estamos finalizando essa etapa que nos traz grande satisfação de estarmos junto com a Fiocruz”.
O Projeto Território de Cuidados, percorrerá 15 territórios dos 27 estados até 2027. Neste ano, entre agosto e dezembro, ainda irá acontecer a Formação-ação em três Pólos: Breves, Cachoeira e Marabá. A iniciativa é uma realização do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (Psat) da Fiocruz Brasília e o Departamento de Prevenção e Promoção da Saúde da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde (DEPPROS/SAPS/MS).
Mossoró, terra da liberdade
Conhecida como a “terra da liberdade”, o município de Mossoró, que foi Pólo da primeira iniciativa de Formação-ação, também é conhecido por um evento conhecido como o “Batismo de fogo de Mossoró”, ocorrido em 13 de junho de 1927, onde um confronto entre os cangaceiros liderados por Lampião e a população local armada, marcou um importante momento na história do cangaço e da região. Além disso, a cidade também é conhecida por ser o primeiro município brasileiro a admitir o voto feminino, em 1934.
É nessa terra marcada por memórias de lutas, que o Projeto de Territórios de Cuidado reúne os povos das águas, do campo, ciganos, quilombolas, de terreiro e as populações LGBTQIAPN+ vindos/as dos municípios potiguares de Açu, Apodi, Baraúna, Caraúba, Governador Dix-Sept Rosado, Grossos, Ipanguaçu, Macau, Natal, Umarizal e Upanema; Além de Aracati, Fortim, Icapuí e Russas no Ceará e Cajazeirinhas, Cajazeiras, Catolé do Rocha e Pombal na Paraíba.
Joyce Montinelly, travesti ativista do movimento LGBTQIAPN+ de Cajazeiras na Paraíba e de religião de matriz africana, aponta a importância do Curso para a compreensão sobre as políticas públicas de saúde e também a promoção do respeito à diversidade. “Para mim, estar neste curso é aprender e compartilhar para fortalecer as iniciativas que já fazemos em nossos territórios. Essas formações continuadas permitem trocas gratificantes, onde a gente pode conhecer o outro, ouvir mais as pessoas e respeitar as individualidades e diferenças, de forma que, possamos incluir e não excluir pessoas da convivência no Território.”
E como estivemos em Mossoró em pleno mês de junho, não poderíamos deixar passar um momento tão intenso de vivência de costumes e tradições sem as/os educandos/as compartilharem as dimensões da história, fé, danças, comidas tradicionais e da música junina. Neste momento, foi possível para a turma apresentar os elementos e histórias que movem suas comunidades, proporcionando um processo de escuta do outro, apontada por elas como um elemento central para desenvolver a saúde coletiva. Além dos temas gerais discutidos, o espaço também permitiu a interseccionalidade com práticas integrativas de cuidado na água e também a vivência corporal a partir da prática da capoeira, explorando outras dimensões de percepção e consciência do corpo.
Vale ressaltar, que reunir as pessoas em um ambiente propício para as partilhas e também construção de novas perspectivas ainda é insuficiente para se apresentar toda a riqueza que cada Território agrega. Nesse sentido, a visita a essas comunidades durante o Tempo Comunidade permite compreender melhor quais são os impactos e adoecimentos que as une, mas sobretudo, reconhecer as iniciativas de Saúde construídas por elas.
Um dos municípios que fazem parte dos territórios contemplados nesta iniciativa de Formação-ação, por meio da participação da Associação Caiçara de Promoção Humana e da Fundação Brasil Cidadão, é Icapuí. A cidade tem pouco mais de 22 mil habitantes e um histórico sobre o debate de saúde integrada à arte, mas que enfrenta muitos desafios para garantir a sua continuidade. Quem nos aponta essa perspectiva sobre a saúde ter sua centralidade na cultura e no cuidado, é o Mestre Ray Lima, poeta e mestre da poesia popular. “O cuidado não só como uma prática, começamos a desenvolver a ideia do cuidado como uma proposição de mundo também. Um mundo que tenha não a ideia da economia como centro do desenvolvimento humano do país, e sim o cuidado como centralidade da política pública”, afirma.
Além dele, também conversamos com o Mestre João Velho de Requenguela que conta um pouco de sua trajetória e a importância da comunidade nesse processo de reprodução da vida em seu cotidiano. Uma das principais questões apontadas é o desafio de envolver a nova geração nos processos coletivos comunitários de forma integrada com a cultura e a educação.
Por outro lado, as políticas públicas precisam considerar a realidade e o modo de vida das comunidades. Pois há um adoecimento e cansaço coletivo resultado do avanço do capital nos territórios que têm impactado diretamente a saúde mental das pessoas nessas localidades, sobretudo, as mulheres. Uma vez que, a maioria das iniciativas nessa área são conduzidas por elas.
Eva Marques, que é integrante da Associação Caiçara de Promoção Humana, comenta que a iniciativa da Fiocruz, “proporciona para as comunidades um momento de troca de cultura, de fortalecimento, de enxergar o nosso Território com esse carinho do cuidado. Dentro da perspectiva de futuro acredito que devemos dar continuidade com o fortalecimento da cultura local e a troca de saberes e sabores.”
De Icapuí para Macaíba, um município na região metropolitana de Natal que possui uma população estimada em 86.433 habitantes, entre eles, o Povo Cigano Calon. Originários da Península Ibérica, foram os primeiros a chegar no território nacional e falam a língua conhecida como calé ou chibi, além do português. Diariamente essas populações enfrentam desafios complexos que exigem abordagens específicas para suas necessidades culturais, sociais, habitacionais, educacionais e de acesso à saúde, que requer políticas públicas de inclusão e de combate ao preconceito.
Esse foi um dos assuntos mais dialogados durante o encontro com a comunidade. A importância do reconhecimento delas e sua inclusão em políticas públicas, além do respeito à sua cultura e modo de vida, é fundamental para garantir o direito à saúde. Por isso, as lideranças ciganas passaram a ocupar espaços institucionais, como a participação no Conselho de Igualdade Racial, Direitos Humanos e Cidadania, entre outros espaços, que permitem fortalecer a reivindicação por políticas públicas específicas para suas comunidades e garantir o direito à permanência e regularização fundiária dos espaços/territórios nas cidades, já que atualmente, a movimentação ou itinerância das famílias Calon pelas cidades ou regiões diminuíram consideravelmente.
“A oportunidade de estar fazendo o curso e ter conhecimento para trazer para a vivência com meu povo a respeito da saúde é gratificante. A gente nunca tinha tido oportunidade de participar de um curso como esse na área da saúde, colocaremos em prática para fortalecer a cultura e bem estar do nosso povo”, ressalta Francisca Raquel, do Coletivo de Mulheres Ciganas Dudu Targino e representante do Povo Cigano Calon no Conselho da Igualdade Racial de Macaíba.
Codó, terra de Quilombos
O outro Pólo que recebeu o Curso de Formação-ação durante esses últimos três meses, foi o município de Codó, a terra mãe e essência da vida quilombola. Com uma diversidade étnica, cultural, social, política e históricas enorme, o Maranhão é o estado com maior quantitativo de localidades quilombolas, com 2.025 (23,99%) no país, seguido da Bahia, com 1.814 localidades, e depois Minas Gerais com 979 localidades. No entanto, o Censo 2022 mostrou que apenas 4,3% da população quilombola reside em territórios já titulados no processo de regularização fundiária.
A estrutura fundiária brasileira é marcada pela racialização do acesso à terra, a violação do direito ao território tradicional para essas comunidades negras rurais e urbanas que há séculos lutam pelo direito à terra e o território, lutas essas que são marcadas por entraves burocráticos e conflitos territoriais. Porém, são Territórios que carregam em si uma diversidade de saberes socioculturais que nutre e sustenta um modo de vida que zela pela sociobiodiversidade.
Neste contexto, espaços como o Curso de Formação-ação são compreendidos como um local onde essas comunidades se veem como protagonistas, partilham os saberes que fortalecem as novas relações necessárias e constroem coletivamente novas possibilidades. É o que afirma Emília de Oyá, do Quilombo Matões do Moreira no município de Codó. “Com a vinda da Fiocruz podemos expandir a questão de Territórios de Cuidado, porque podemos dizer para os nossos sobre a troca de experiências que tivemos. Estamos mostrando para essa população e para esse mundo que nós estamos aqui e que precisamos ser cuidados e para isso precisamos ter a nossa territorialidade”, sinalizou.
Durante três meses, representantes quilombolas maranhenses vindos/as de Alcântara, Aldeias Altas, Barreirinhas, Caxias, Chapadinha, Coroatá, Dom Pedro, Itapecuru, Lima Campos, Santo Antônio dos Lopes, Parnarama, Pedreiras e São Luís, se encontraram com as lideranças vindas de José de Freitas, Piripiri, Teresina e União, no Piauí.
Evanilza Rodrigues, Presidente da Kolping União/Sindicalista e Educadora Popular do município de União no Piauí, reforça a importância desta iniciativa ocorrer em outros locais do país. “O Curso precisa expandir para outros estados e ter mais módulos para aprofundar o debate, como a questão do conhecimento em plantas medicinais que podemos aprimorar em nossas comunidades e reviver a importância do autocuidado a partir dessa perspectiva com um módulo específico”, sugere.
No entendimento de Território como uma força, onde se constrói a vida e a resistência a partir dos aprendizados ancestrais, a forma de viver e de se organizar neste espaço se constitui em uma fortaleza diante da violação de direitos, das ameaças e dos desafios impostos pelo atual modelo de sociedade capitalista. Logo, a participação de todas/os no debate confirma que vem de longe o violento processo de desenvolvimento do capital, mas as práticas e conhecimentos ancestrais dos povos caminham em conjunto com as lutas, passadas e atuais, pelo bem comum.
E assim, finaliza essa parte da jornada do Projeto Territórios de Cuidado, embalada pelo desejo de ser tambor, pelo cheiro de lavanda e alecrim, pelas rezas e tradições, pela informação e o conhecimento técnico científico, é que o debate sobre a Promoção da Saúde e Participação Social se firma como algo que deve ser compreendido de forma integral. Novamente, se reafirma o nosso compromisso com a casa comum, que esta seja levantada em mutirão na luta por direitos, na escuta dos griôs, na soberania alimentar, na cooperação, com as plantas que curam, com as mãos que fazem, no corpo que dança. As dimensões do cuidado, de si, do outro, da Terra, da psique e espiritualidade promovem encontros das gerações que se curam e se abraçam.
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