Há uma década, o Programa de Evidências para Políticas e Tecnologias em Saúde (PEPTS) da Fiocruz Brasília vem fortalecendo o SUS com ciência, formação e decisões baseadas em evidências.
“Acreditamos que avaliar tecnologias em saúde é também uma forma de defender políticas públicas inclusivas, baseadas em evidências e comprometidas com a justiça social.”
A afirmação é de Flávia Silva Elias, pesquisadora da Fiocruz Brasília e idealizadora do Programa de Evidências para Políticas e Tecnologias em Saúde (PEPTS), que completa uma década de atuação estratégica no fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Criado em 2014, o programa consolidou-se como referência nacional em Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) e, desde 2015, integra a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats) como Núcleo de ATS (NATS).
Ao longo desses 10 anos, o PEPTS realizou mais de 200 sínteses de evidências científicas, capacitou mais de 8 mil profissionais do SUS e de agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e contribuiu diretamente para decisões estratégicas em regulação sanitária e incorporação de tecnologias no país.
Com uma atuação que articula pesquisa, formação e assessoramento técnico, o PEPTS também se destaca pela produção de estudos para a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); pela coordenação de cursos de especialização e turmas temáticas no mestrado profissional da Escola de Governo Fiocruz-Brasília; e por representar a região Centro-Oeste na Rebrats, no mandato 2024–2026.
Para além das capacitações, o Programa vem ampliando sua atuação com estudos sobre impacto regulatório, sustentabilidade, saúde planetária e, mais recentemente, com pesquisas voltadas ao uso da inteligência artificial na avaliação de tecnologias. Entre seus principais legados está a consolidação de uma ATS com identidade própria, produzida a partir do Sul Global, conectada aos princípios do SUS e orientada por valores como equidade, integralidade e universalidade.
Confira, a seguir, a entrevista com a coordenadora do PEPTS/NATS, Flávia Elias, que relembra momentos marcantes e projeta os próximos passos dessa trajetória de 10 anos da Fiocruz Brasília na produção de evidências para a saúde pública.
O que é o Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS)?
Flávia Elias: Os Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde fazem parte da estratégia de fortalecimento da Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats), que tem como objetivo promover e difundir a área de ATS no Brasil. Inicialmente implantados em hospitais de ensino, hoje já somam mais de 120 núcleos no país, com a missão de produzir e aplicar evidências científicas que apoiem a tomada de decisão dos gestores, seja para a incorporação de novas tecnologias, a avaliação de tecnologias já utilizadas ou o uso racional de recursos com base em protocolos clínicos. Entre suas atribuições, estão a promoção da capacidade técnica das instituições para inserção na Rebrats, a capacitação permanente de profissionais, a produção de estudos e revisões sistemáticas, bem como a atualização de diretrizes clínicas, sempre alinhadas às necessidades do SUS.
O que motivou a criação do PEPTS na Fiocruz Brasília e como se deu sua consolidação como NATS?
FE: O PEPTS nasceu da necessidade de articular a produção de evidências científicas com os processos de incorporação de tecnologias no SUS, contribuindo com o assessoramento técnico a órgãos como a Anvisa e o Ministério da Saúde. Além disso, a trajetória de pesquisadores especialistas em ATS e sua interação com atores da Política Nacional de Gestão de Tecnologias em Saúde (PNGTS), publicada em 2009, foram fundamentais para o fortalecimento dessa iniciativa. A consolidação como NATS se deu de forma natural, a partir de uma atuação consistente em ensino, assessoramento e cooperação com diferentes instâncias do sistema de saúde.
Como você avalia a transformação do PEPTS ao longo desses 10 anos?
FE: Nesses 10 anos, conseguimos consolidar uma equipe de base, manter parcerias estratégicas com o Ministério da Saúde e a Anvisa, além de formar uma rede sólida de colaboradores. Atualmente, coordenamos uma turma temática de ATS no mestrado profissional da Fiocruz Brasília, representamos os NATS da região Centro-Oeste na Rebrats e formalizamos nosso grupo de pesquisa no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), um reconhecimento que se estende a toda a Fiocruz.
Quais são os principais resultados e conquistas do PEPTS nessa década?
FE: Atuamos em três grandes eixos: estudos e pesquisas, educação e assessoramento técnico. Oferecemos capacitações práticas em revisões rápidas de evidências, disciplinas no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde (MPPPS), cursos online sobre metodologias de ATS e mantemos cooperações técnicas com a Anvisa e o Ministério da Saúde para estudos estratégicos. Nos destacamos pelo compromisso com a formação de profissionais qualificados, pela produção de evidências confiáveis e pela contribuição efetiva para decisões de saúde pública baseadas em evidências.
Quais foram os maiores desafios enfrentados nesses 10 anos — e como foram superados?
FE: Um dos principais desafios foi manter uma equipe técnica ativa, capacitada e com remuneração compatível ao nível de complexidade das atividades. Outro foi estabelecer e sustentar relações institucionais de confiança que viabilizassem a continuidade dos projetos de cooperação com órgãos como Anvisa e Ministério da Saúde. Superamos esses obstáculos com compromisso, resiliência e, principalmente, por acreditar no impacto transformador do nosso trabalho.
Há números ou indicadores que expressem o impacto do trabalho do PEPTS na saúde pública?
FE: Sim. Entre 2016 e 2021, capacitamos 2.010 profissionais do SUS e da Anvisa por meio de cursos a distância e híbridos, voltados a métodos em Avaliação de Tecnologias em Saúde. De 2022 a 2025, esse número saltou para 5.333 profissionais, em formações que também contemplaram temas como vigilância epidemiológica. Esses números expressam o compromisso do PEPTS com a qualificação contínua de profissionais que atuam na ponta e com a disseminação de uma cultura de tomada de decisão baseada em evidências.
Como o PEPTS tem contribuído para o SUS e para decisões em saúde no país?
FE: Nossa contribuição se dá por meio de diversos produtos técnicos e científicos: revisões sistemáticas, revisões de escopo, metanálises, respostas rápidas, estudos epidemiológicos, informes de monitoramento do horizonte tecnológico, análises críticas de processos, benchmarking, estudos de custos, impacto orçamentário, impacto regulatório, avaliação de programas e diálogos deliberativos de políticas. Um exemplo marcante foi o projeto de cooperação com a Anvisa, entre 2017 e 2020, em que produzimos 222 pareceres técnico-científicos para subsidiar decisões regulatórias. Dentre os medicamentos analisados, 26,39% pertenciam à classe dos antineoplásicos, seguidos por antidiabéticos (8,33%) e anticoncepcionais (4,86%). Também nos debruçamos sobre temas relevantes, como o uso do cigarro eletrônico entre jovens, associado ao risco de iniciação ao tabagismo, e a acurácia de testes sorológicos para diagnóstico de Zika. Outro destaque é a parceria com o NATS do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz) na elaboração de estudos técnico-científicos para a ANS, voltados à incorporação de tecnologias no Rol de Procedimentos da Saúde Suplementar.
Como o PEPTS trabalha a produção de evidências para temas complexos e intersetoriais?
FE: Recebemos demandas da Conitec e realizamos ciclos de priorização em parceria com a Anvisa. Além disso, desenvolvemos estudos em rede, articulando unidades da própria Fiocruz, como o Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), e instituições do território, como a Universidade do Distrito Federal (UnDF) e a Universidade de Brasília (UnB). Essa articulação permite que nossas análises estejam mais conectadas aos contextos locais e às realidades dos serviços de saúde.
Pode destacar alguma pesquisa, tecnologia ou metodologia que represente o diferencial do PEPTS?
FE: As formações que oferecemos na Escola de Governo da Fiocruz- Brasília, especialmente no âmbito do MPPPS, são um grande diferencial. Elas são construídas de forma colaborativa entre os pesquisadores e combinam uma base teórica sólida com atividades práticas. Os cursos online (Massive Online Courses – MOOCs) também são bastante valorizados. As avaliações de satisfação ultrapassam 95%, evidenciando a qualidade do conteúdo e a importância da educação continuada para acompanhar os avanços metodológicos e tecnológicos da área. Além disso, o PEPTS também tem atuado na criação de trilhas de formação estruturadas e na oferta de turmas voltadas especificamente à ATS dentro da Fiocruz Brasília.
Como tem sido o diálogo com gestores, profissionais e populações locais nas atividades de ATS?
FE: A utilização de evidências científicas para embasar decisões de cobertura tecnológica é uma prática consolidada em diversos países. No Brasil, esse movimento se fortaleceu a partir da 2ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, entre 2003 e 2005, quando o Ministério da Saúde assumiu a liderança dos processos regulatórios. A partir daí, participei ativamente da construção de políticas públicas, inclusive enquanto gestora no próprio Ministério da Saúde, contribuindo para a institucionalização da ATS como ferramenta estratégica no SUS, culminando na criação da Conitec pela Lei nº 12.401/2011. Desde então, o PEPTS atua de forma próxima a gestores, profissionais e representantes da sociedade, com o objetivo de promover decisões mais justas, fundamentadas e transparentes.
Qual a importância da Rebrats para o trabalho do PEPTS?
FE: A Rebrats é essencial para viabilizar a produção e disseminação de estudos de ATS considerados prioritários para o SUS. O PEPTS atua justamente nesse campo, desenvolvendo atividades de geração, difusão e compartilhamento de evidências e conhecimentos de forma crítica e contextualizada, com foco tanto na formação de profissionais quanto no apoio à incorporação de tecnologias em saúde. A Rebrats é composta por NATS que tenham, entre suas finalidades, a Avaliação de Tecnologias em Saúde, e o PEPTS se insere nesse contexto como um núcleo atuante e comprometido com os objetivos da rede.
Qual a importância da atuação do PEPTS como representante do Centro-Oeste na Rebrats?
FE: Representar a região Centro-Oeste na Rebrats, no mandato 2024–2026, é um reconhecimento da trajetória do PEPTS e um compromisso com a ampliação das capacidades técnicas regionais. Nosso papel é articular, promover capacitações e estimular que mais instituições da região integrem a Rede. Em 2023 e 2024, realizamos duas oficinas práticas de revisões rápidas com núcleos do Centro-Oeste. Dessas formações, surgiram estudos aplicados que subsidiaram decisões importantes, como a cobertura de tecnologias pela Secretaria Estadual de Saúde de Goiás e por hospitais vinculados à Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
Quais aprendizados essa trajetória trouxe para o PEPTS e seus profissionais?
FE: Aprendemos a ampliar nossa escuta e nossa abordagem metodológica. A interação com os territórios em que atuamos nos levou a considerar variáveis sociais, ambientais e econômicas que influenciam diretamente os desfechos em saúde. Também compreendemos a importância de dialogar com instituições resilientes — como o Ministério da Saúde e a Anvisa — para garantir que os processos de incorporação de tecnologias se mantenham mesmo diante de cenários adversos e da crescente desinformação.
Quais são as perspectivas para os próximos anos do PEPTS?
FE: Temos muitos planos. Entre eles, destacamos:
Que legado o PEPTS espera deixar para a Avaliação de Tecnologias em Saúde e para as políticas públicas brasileiras?
FE: Um dos nossos compromissos mais importantes é com a construção de uma ATS produzida a partir do Sul Global e, especificamente, do Brasil. Isso significa adotar metodologias com rigor científico, mas que dialoguem com os princípios do SUS: equidade, integralidade e universalidade. Acreditamos que é possível produzir ciência autônoma, de qualidade, que responda aos desafios locais e que, ao mesmo tempo, dialogue com os marcos regulatórios internacionais. Isso envolve avaliar tecnologias para doenças crônicas complexas, como o lúpus ou a doença de Crohn, mas também gerar evidências para políticas públicas que fortaleçam o cuidado nos hospitais e territórios. Além disso, defendemos que aspectos ambientais e climáticos passem a integrar as análises em saúde, algo indispensável frente às emergências do nosso tempo.
E diante dos novos desafios sanitários, sociais e ambientais, qual é o papel do PEPTS?
FE: Em um cenário de proliferação de desinformação, muitas vezes deliberada, a produção de sínteses de evidências torna-se ainda mais relevante para orientar gestores e a população. Soma-se a isso o impacto crescente das mudanças climáticas e da flexibilização de marcos ambientais, que alteram diretamente o perfil epidemiológico e sanitário do país. Nosso papel é ampliar o olhar da ATS, incorporando critérios que permitam avaliar não apenas eficácia e segurança, mas também impactos ambientais, éticos e culturais. A série especial que preparamos para celebrar nossos 10 anos vai trazer esse debate à tona, porque é urgente pensar em tecnologias que cuidem da saúde sem comprometer o futuro do planeta.
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