Estratégias de controle da dengue precisam ser revistas, afirma pesquisa

Fiocruz Brasília 25 de novembro de 2014


Um artigo publicado por pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) na revista científica Bulletin of the World Health Organization, editada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), aponta para a necessidade de mudança nas estratégias de controle da dengue no Brasil. O estudo mostra que as medidas recomendadas pelo Programa Nacional de Controle da Dengue não foram suficientes para conter a disseminação do vírus tipo 4, detectado na cidade de Boa Vista, em Roraima, em 2010. “Analisamos uma situação em que todas as ações foram realizadas de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde, que segue as recomendações da Organização Panamericana de Saúde (Opas) e da OMS. Mesmo assim, o impacto sobre a infestação de mosquitos Aedes aegypti foi pequeno. Esse é um exemplo contundente de que é preciso refletir sobre quais são as melhores práticas de controle”, afirma Denise Valle, pesquisadora do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC/Fiocruz e uma das autoras do trabalho.

Os diferentes sorotipos do vírus causam a mesma doença, mas são percebidos de forma diferente pelo sistema imune do paciente. Assim, quando uma pessoa é infectada por um deles, desenvolve imunidade e fica protegida em futuros contatos com aquele mesmo sorotipo do vírus. No entanto, esta pessoa ainda pode ter dengue novamente, caso seja infectada por outro sorotipo. Esta característica foi um dos motivos para o combate intenso ao vírus dengue 4 em Boa Vista, em 2010. Uma vez que este patógeno foi identificado no Brasil apenas uma vez até então (em 1981, também na capital de Roraima), havia o risco potencial de epidemias em todo o país. “Nos anos 1980, Boa Vista era uma capital bastante isolada e foi possível conter o surto antes que o dengue 4 se espalhasse para outras regiões. Portanto, 99% dos brasileiros nunca tinham tido contato com este vírus até 2010. Quase toda a população estava suscetível à infecção”, explica Rafael Maciel de Freitas, pesquisador do Laboratório de Transmissores de Hematozoários do IOC/Fiocruz, que também assina o artigo.

Para tentar bloquear a disseminação do vírus dengue 4, as autoridades de saúde decidiram intensificar as medidas de combate ao mosquito Aedes aegypti em Boa Vista. As ações contaram com a cooperação entre as esferas de governo municipal, estadual e federal. Por solicitação da coordenação geral do Programa Nacional de Controle da Dengue, a avaliação destas ações foi feita por pesquisadores do IOC/Fiocruz. Vistorias para eliminar criadouros das formas imaturas do inseto foram realizadas em todas as casas de 22 dos 31 distritos da cidade, recobrindo uma área onde estão concentrados 75% da população. Ao todo, 56.837 imóveis foram inspecionados por agentes de saúde. Os profissionais removeram objetos que poderiam acumular água e aplicaram larvicidas, produtos químicos para matar as larvas do mosquito, nos reservatórios que não poderiam ser eliminados. O trabalho foi acompanhado pelo uso de carros para pulverizar inseticida nas ruas, com o objetivo de matar os mosquitos adultos.

Aumento da resistência dos mosquitos

Apesar de todo o esforço, o índice de infestação (calculado pelo Levantamento de Índice Rápido para Aedes aegypti – LIRAa, que mede a infestação pelo mosquito a partir da presença de larvas) caiu apenas 0,33 pontos percentuais, passando de 1,7% para 1,37% e permanecendo acima do limite de 1%, considerado perigoso pela OMS. “Além do LIRAa, nós utilizamos armadilhas para monitorar a quantidade de ovos de Aedes aegypti, como um indicativo de que os insetos permaneciam presentes e se reproduzindo. Para nossa surpresa, após duas semanas de trabalho intenso, não houve redução nenhuma”, conta Rafael, que viajou para Boa Vista para coordenar as atividades de avaliação das ações de controle.

A principal mudança percebida pelos cientistas após as ações foi negativa: o aumento da resistência dos mosquitos aos inseticidas. A chamada ‘razão de resistência’ dobrou após três meses e triplicou depois de seis meses. Isso significa que, um semestre após as ações de combate ao Aedes aegypti terem sido intensificadas, seria necessário usar uma concentração de inseticida três vezes maior para matar a mesma quantidade de mosquitos. Os pesquisadores ressaltam que a resistência dos insetos aumentou mesmo em áreas que não foram pulverizadas com inseticida pelas autoridades de saúde, o que pode ser explicado pelo uso doméstico das fórmulas. “No momento da epidemia, costuma ocorrer pânico entre a população, que recorre a inseticidas vendidos livremente nos mercados e farmácias. No entanto, estes produtos não conseguem eliminar todos os mosquitos e seu uso acaba contribuindo para o aumento da resistência”, diz Denise. A pesquisadora destaca ainda que o aumento da resistência foi significativamente menor para o produto utilizado contra as larvas, que não está disponível para a população.

Menos de um ano após a identificação em Boa Vista, o vírus dengue 4 já era detectado em nove estados e, em 2012, alcançou 22 das 27 unidades da federação, segundo dados do Ministério da Saúde. No verão de 2013, este foi o sorotipo mais frequente no país, causando epidemias em diversas regiões.

Engajamento como arma

Para os pesquisadores, o baixo impacto das ações adotadas e o aumento da resistência a inseticidas observados em Boa Vista evidenciam a necessidade de uma mudança de conduta no combate à dengue. “Não existe um culpado nesta situação. As melhores práticas foram aplicadas e mesmo assim não houve sucesso. Acreditamos que é necessário refletir sobre este cenário”, afirma Denise. No artigo publicado no Boletim da OMS, os pesquisadores citam o exemplo de Cingapura, onde a mobilização popular conseguiu reduzir os casos de dengue durante uma epidemia entre 2004 e 2005. Apesar das grandes diferenças geográficas e culturais entre o país asiático e o Brasil, a efetividade da ação aponta para um elemento importante na opinião dos cientistas: o engajamento da população. “O estado precisa fornecer serviços públicos, como saneamento básico e coleta de lixo, que são fundamentais no controle da dengue. No entanto, uma postura paternalista, em que os agentes de saúde são os principais responsáveis por eliminar os criadouros do Aedes aegypti, parece não estar dando certo”, pondera.

Mosquitos com a bactéria Wolbachia, que não transmitem dengue, e vacinas para prevenir a doença são avanços científicos em desenvolvimento que podem contribuir para o controle da dengue. No entanto, os cientistas ressaltam que estas iniciativas devem ser vistas como medidas complementares no combate à doença. “Dificilmente, uma ação isolada será capaz de acabar com a dengue. O combate aos mosquitos é a única forma de prevenção disponível hoje e, provavelmente, ele continuará sendo importante por muitos anos”, afirma Rafael.

O artigo científico publicado no Boletim da OMS pode ser acessado gratuitamente online. Os dados sobre a resistência dos mosquitos aos inseticidas estão detalhados em outro estudo, divulgado na revista científica ‘Plos One’, com a colaboração de pesquisadores IOC/Fiocruz, do Ministério da Saúde – incluindo o coordenador geral do Programa Nacional de Controle da Dengue, Giovanini Coelho –, da Secretaria Estadual de Saúde de Roraima, do Instituto de Biologia do Exército e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Entomologia Molecular (INCT-EM). O trabalho também está disponível no site da publicação.