Entre saberes, sabores e territórios: saúde e ancestralidade em formação coletiva

Fiocruz Brasília 8 de dezembro de 2025


Iris Pacheco (Psat/Fiocruz Brasília)

 

Ao longo de três meses, o Centro Vocacional Tecnológico Territorial do Pescado (CVTT) da Bahia Pesca, localizado na Fazenda Oruabo, em Acupe, no município de Santo Amaro (BA), foi palco de intensas trocas e aprendizados. Cada módulo teve duração de três dias, sendo que o III e último módulo da Formação-Ação em Promoção da Saúde e Participação Social aconteceu nos dias 1º e 3 de dezembro. A atividade reuniu 62 lideranças de comunidades de pescadores e marisqueiras, quilombolas e indígenas, além de integrantes dos movimentos negro, feminista, LGBTQIAPN+ e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O encontro teve início com a Feira de Saberes e Sabores, ampliando a participação e a partilha dos conhecimentos tradicionais que cada território levou para compartilhar.

 

Para a Makota Endembure, o espaço, assim como o curso, é fundamental para a valorização da cultura, da identidade e das raízes dos povos quilombolas, pois possibilitou diversas partilhas e debates sobre as múltiplas matrizes que os constituem. Vestida com indumentária de baiana, ela explicou: “Esse aqui é o alaká, ele pode ser usado na cintura para guardar o nosso ventre, no peito para guardar a nossa mama e no ombro para dizer que sou uma mulher de cargo, já empoderada dentro do candomblé. As abiãs começam usando na cintura, e toda mulher do candomblé tem que usar esse pano. Ele é a proteção do nosso ventre.”

 

A Makota também conduziu uma explicação pela banca do seu território e apresentou os bordados ancestrais como o richelieu e crochê, os colares artesanais, as roupas tradicionais, entre outras produções. Entre os produtos, estava o azeite de dendê produzido pelo quilombo Engenho da Ponte, que, junto aos quilombos Kaonge, Dendê, Kalemba e Santiago do Iguape, criou o Núcleo de Turismo Étnico Rota da Liberdade, com roteiros que apresentam a história, a geografia, a cultura e o modo de vida das comunidades da região da Bacia do Iguape-Cachoeira.

 

Receitas afetivas: alimento para o corpo e a alma

Mais do que um simples prato, receita afetiva se refere à tradição coletiva que fortalece vínculos sociais, preserva a identidade cultural e a história de um povo. Provocando essa dimensão para os territórios presentes no curso é que alguns sabores foram degustados na Feira. Entre eles, o sirinoura apresentado por Mainara Brito. “É um refogado do catado de siri com leite de coco, coentro, cebola e alho, tudo refogado com a cenoura, se transformando nessa receita afetiva. Todo mundo que provou lá em Dona José, em Conceição de Salinas, gostou.”

 

Já Maria Conceição Payayá e seu grupo levou o alimento básico que representa a cultura de Alagoinhas: o beiju e os derivados da mandioca. Foram apresentados vários tipos de beiju, o biscoitinho de goma e a farinha de mandioca. “É importante destacar que, durante muito tempo, se negou a origem indígena de Alagoinhas. Na história formal, se coloca que o município se originou de um grupo de brancos e padres franciscanos. Mas a história real mostra que Alagoinhas é de origem indígena. Além dos topónimos [nomes próprios de lugares] dos bairros e de toda a região, temos um chamado Ponto do Beiju, temos casas de farinha em quase todos os bairros da cidade e várias associações de produtores rurais especializados na produção dos derivados da mandioca. Esse trabalho serviu para confirmar, do ponto de vista da autenticidade e da vivência, que Alagoinhas é de origem indígena e que nossa memória afetiva também está ligada à ancestralidade indígena”, afirmou.

 

As receitas também estão ligadas às tradições culturais religiosas. É o que nos mostrou Claudiana Noronha, de Maragogipe, que compartilhou a receita efetiva do manjar. “No candomblé, ele representa o bori, o manjar dos deuses. A gente oferece aos orixás em agradecimento e, depois, o sacerdote partilha com todas as pessoas presentes”, explicou. Além da Feira de Saberes e Sabores, os dias de atividades foram marcados por intensas trocas de conhecimentos sobre território e cuidado, debates sobre a saúde pública no Brasil, com ênfase no SUS, e discussões sobre as manifestações do racismo no sistema de saúde.

 

Francyslane Vitória da Silva, integrante do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (Psat/Fiocruz-Brasília), destacou que “esse é um curso importante, pois trabalha diretamente com os movimentos sociais. É uma formação em cuidado em saúde que vai além da questão biomédica, pois fala sobre cultura, educação, ambiente, tudo aquilo que influencia diretamente na saúde”.

 

Foram momentos em que todas as pessoas participantes demonstraram atenção aos processos que se desenvolvem nos espaços públicos e reconheceram a necessidade de ampliar sua participação social, sobretudo por meio da comunicação popular como estratégia de formação e informação.

 

Cultura e saúde

Ao longo de todo o curso, foram incentivadas e desenvolvidas ações que não apenas valorizam a cultura local, mas também mantém vivo, no coletivo, o lugar do corpo em movimento por meio da arte e da educação.

 

Erlan, assentado e integrante do Coletivo de Cultura do MST na região do Recôncavo Baiano, afirmou que “trazer contribuições culturais com músicas populares que dialogam com o dia a dia dos territórios é muito importante para o fortalecimento dos territórios pela perspectiva da cultura popular”.

 

Enquanto Denise Rodrigues, da Sankofa Orí, em Itacaré, comentou sobre a dimensão das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), também desenvolvidas pelas educandas e educandos, buscando promover o bem-estar de todas e todos. “Trabalhamos com práticas integrativas de cuidado, como ventosaterapia, escalda-pés e argiloterapia. É uma satisfação poder mostrar os cuidados que trazemos de nossos territórios e articular com outros territórios para expandir essas experiências na Bahia.”

 

Desse modo, o encerramento do Curso de Formação-Ação em Promoção da Saúde e Participação Social foi mais do que um simples fechamento de ciclo. Os momentos de estudo, aprendizado e partilhas coletivas fortaleceram saberes e vínculos, garantindo a continuidade de muitos outros caminhos, nos quais o cuidado coletivo seguirá sendo a raiz e a força motriz dos territórios.