NOTÍCIAS RELACIONADAS
Avanços
O aspecto de construção coletiva da lei que seria aprovada em 2001 é destacado pelo psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Eu considero que a lei, quando foi aprovada, já tinha conseguido ser o instrumento para a construção de uma consciência coletiva sobre cuidado e liberdade. Ela já foi aprovada com uma legitimação na sociedade, por conta do debate. Todo mundo sabia o que estava sendo aprovado e ela foi intensamente comemorada”, avalia ele, para quem a lei representou inúmeros avanços.
Segundo Delgado, em 2000, 95% dos recursos federais para a saúde mental eram destinados para os hospitais psiquiátricos e apenas 5% para os serviços comunitários. “Em 2005, portanto quatro anos depois da entrada em vigor da lei, esse financiamento se inverteu. A maior parte passou a ser destinado à rede extra hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial [CAPS], residências terapêuticas, centros de convivência, e menos da metade destinado aos hospitais psiquiátricos”, contabiliza.
De acordo com o professor da UFRJ, o SUS chegou a 2015 com 75% dos recursos federais injetados nos serviços comunitários e menos de 25% para leitos psiquiátricos hospitalares. “A gente passou de 65 mil camas psiquiátricas convencionais, e chegamos a 2015 com cerca de 22 mil camas. Ainda tem muitos leitos psiquiátricos, mas é uma redução muito importante e feita de uma maneira muito regular, sem desassistência, porque foram criadas as residências terapêuticas”, avalia ele.
A expansão e a interiorização dos Caps foi outra consequência da aprovação da lei. “Até 2001, o atendimento de saúde mental no Brasil era centrado nas grandes cidades, principalmente nas capitais. Com a lei, nós saímos de cerca de 180 para 2,6 mil Caps colocados em cidades do interior do país. Hoje, se você pegar o mapa do Brasil e olhar onde estão espetados os Caps, eles estão interiorizados, eles estão no Nordeste, na região Centro-Oeste. Então houve uma descentralização muito grande dos serviços, com impacto evidente”, diz Delgado. Nas contas dele, como consequência, foram incorporados mais de 25 mil novos trabalhadores à saúde mental no SUS.
O terceiro ponto destacado pelo psiquiatra é o avanço no campo dos direitos dos pacientes com transtornos mentais. “A partir da lei foram introduzidas normas para os procedimentos de internação involuntária no Brasil, que até então não existiam. É um controle imperfeito? É. Mas, nesse momento, qualquer profissional que determinar a internação de um paciente contra sua vontade é obrigado a comunicar a Defensoria Pública ou o Ministério Público. Criou-se um fluxo até então inédito, no sentido de que não se pode tudo em termos de tratamento da doença mental”, afirma Delgado.
Contrarreforma avança
Apesar de todos os ganhos, no entanto, a lei da Reforma Psiquiátrica completa 20 anos em meio a um contexto de crescimento da influência política de atores sociais que defendem um retorno a algo muito parecido ao modelo manicomial. “Está em curso a Contrarreforma Psiquiátrica. O objetivo dos atuais gestores é voltar àquele modelo antigo de internação como dispositivo central, e internação em serviços privados, de modo que também é um desfinanciamento do SUS para direcionar os recursos públicos à iniciativa privada”, analisa Leonardo Pinho, presidente da Abrasme.
E quais são essas instituições? Segundo ele, principalmente hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas – que, além dos usuários de álcool e outras drogas, público-alvo tradicional, agora recebem população de rua e adolescentes. Tudo isso com autorização do governo. “Estão, inclusive, ampliando o seu mercado”, denuncia ele.
E completa: “O repasse público de dinheiro cresce ano a ano para o setor privado, que quer ganhar dinheiro com leitos de internação, e diminui o ritmo de ampliação da Rede de Atenção Psicossocial, que são aqueles equipamentos do SUS. Então não é um simples retrocesso”.
Já Paulo Amarante avalia que o ataque aos princípios da Reforma Sanitária vêm no bojo de um ataque à democracia, ao Estado de direito e à Constituição Federal. “A Reforma Psiquiátrica, e o SUS como um todo, são projetos de inclusão, que colocam a saúde como direito, dever do Estado. E nós estamos sofrendo um processo de destruição desses direitos, passando pelo direito à Previdência, à saúde, à educação, à participação social, com o desmonte dos conselhos. Não é uma disputa de modelo assistencial”, vincula.
Além disso, o pesquisador destaca os interesses de mercado, que falam mais alto nesse processo: “A psiquiatria oficial está fortemente vinculada aos interesses de mercado, recebe altos financiamentos da indústria farmacêutica, recebe altos financiamentos de outras áreas empresariais, e não está mais falando de saúde mental da população. Está falando de mercado. Isso para mim é muito claro”.
Pedro Delgado defende que o momento é de sustentação dos avanços obtidos pela lei 10.216. “Mesmo com todas as dificuldades por conta da pandemia e da precarização, os Caps continuam funcionando em todo o Brasil. Nós temos todos os motivos para comemorar os 20 anos da lei – uma lei de direitos humanos e de mudança do modelo de atenção. Temos que celebrar a legitimidade que essa lei conquistou junto à população, e os avanços obtidos. Mas o cenário nesse momento é desfavorável, é um cenário de resistência”.