Do combate à fome à qualidade do que chega à mesa: seminário reforça urgência de políticas públicas

Nathállia Gameiro 18 de setembro de 2025


A luta contra a fome no Brasil avança, mas os desafios permanecem. Mais do que garantir acesso, é preciso assegurar a qualidade do que chega à mesa da população. Esse foi o tom do seminário Sistemas Alimentares em Disputa: ciência, mudanças climáticas, políticas públicas e justiça social, realizado no dia 5 de setembro, no Rio de Janeiro, que reuniu mais de 200 pessoas de forma presencial e online. Promovido pela Fiocruz em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), o evento destacou a urgência de políticas públicas robustas para enfrentar as desigualdades, reduzir o consumo de ultraprocessados e fortalecer práticas alimentares saudáveis e sustentáveis.

Representando a Fiocruz Brasília, o pesquisador Eduardo Nilson, do Programa de Alimentação, Cultura e Saúde (Palin) e do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA), apresentou evidências científicas que associam os ultraprocessados ao aumento de doenças crônicas e da mortalidade no país. Segundo ele, cerca de 20% das calorias consumidas pelos brasileiros vêm desses produtos, com maior concentração entre adolescentes e registros de consumo precoce em crianças pequenas.

“O impacto é de uma magnitude gigantesca. Estamos falando de dezenas de milhares de mortes ao ano, mas também de bilhões de reais em custos para o SUS e para a sociedade”, afirmou. Nilson destacou que obesidade, diabetes tipo 2 e hipertensão são os principais desfechos, mas os dados também apontam relações com câncer, problemas metabólicos, cardiovasculares, gastrointestinais, respiratórios e até de saúde mental.

Os números apresentados são alarmantes: só a mortalidade prematura relacionada ao consumo de ultraprocessados gera mais de R$ 4 bilhões anuais em custos diretos e indiretos, incluindo tratamentos no Sistema Único de Saúde (SUS), licenças do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e perda de produtividade no trabalho. Estudos projetam que, com políticas como a taxação de ultraprocessados, seria possível prevenir até 237 mil mortes ao longo do tempo.

Nilson lembrou que, apesar do crescimento preocupante no consumo desses produtos, a maior parte da dieta brasileira ainda é composta por alimentos in natura e minimamente processados. “É nesse campo que precisamos investir. Precisamos ampliar a diversidade alimentar e promover sistemas saudáveis e sustentáveis. Essa agenda extrapola a academia e precisa ser levada aos gestores e à sociedade civil, porque é, de fato, uma guerra de narrativas”, completou.

Mudanças climáticas e sistemas alimentares

A pesquisadora Helena Lopes, da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), trouxe a relação direta entre mudanças climáticas e sistemas alimentares, com foco no uso da terra e nas alternativas da agroecologia. Ela lembrou que cerca de 80% das emissões globais de gases de efeito estufa vêm dos setores de energia, indústria, transporte e construção, mas outros 22% estão ligados à agricultura, às florestas e ao uso da terra. “O Brasil é responsável por 8% a 10% das emissões globais nesse campo, o que dá uma dimensão muito específica sobre o significado do uso da terra no nosso país”, alertou.

Segundo Helena, dois terços das emissões mundiais estão relacionadas diretamente aos sistemas alimentares: da queima de vegetação nativa ao manejo de dejetos animais, do cultivo de arroz irrigado ao uso intensivo de fertilizantes, passando ainda pelo processamento industrial, embalagens e refrigeração. “O que está em jogo é a forma como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos. Isso exige mudanças profundas, e a agroecologia surge como caminho para conciliar saúde, justiça social e sustentabilidade ambiental.”

As contribuições dos representantes da Fiocruz dialogaram com as falas de outros convidados. A pesquisadora  Patrícia Jaime, da USP, destacou a necessidade de superar a visão reducionista da nutrição, lembrando que as pessoas comem alimentos em contextos sociais, e não nutrientes isolados. Paula Johns, da ACT Promoção da Saúde, ressaltou que determinantes comerciais moldam o consumo e que políticas regulatórias são essenciais para mudar esse cenário. Já Juliana Casemiro, pesquisadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) apontou a soberania alimentar dos territórios como espaço de resistência e transformação, defendendo que a responsabilidade é coletiva, do local ao global.

Durante o seminário, os participantes destacaram que a transformação dos sistemas alimentares depende do fortalecimento de políticas públicas capazes de enfrentar interesses econômicos, regular ambientes alimentares e promover o direito humano à alimentação adequada. A parceria entre Fiocruz e USP foi reafirmada como estratégica para produzir evidências, fomentar debates e apoiar ações em busca de alternativas mais justas, saudáveis e sustentáveis para o Brasil e o mundo.

Sistemas alimentares e comensalidade contemporânea

Como parte da programação, foi realizada a Conferência Internacional Sistemas Alimentares e Comensalidade Contemporânea, com o objetivo de promover um diálogo sobre os desafios alimentares atuais. A sessão buscou integrar dimensões antropológicas, socioculturais, epidemiológicas e simbólicas da comensalidade como prática social, convidando à reflexão sobre alimentação, saúde e modos de vida sob as lentes da cultura e da saúde pública.

O sociólogo francês Claude Fischler  abordou a relação entre comensalidade, modernidade e os sentidos da alimentação nas sociedades contemporâneas, destacando a importância dos rituais e práticas sociais ligadas ao ato de comer. Para ele, o problema das chamadas comidas industriais é que o consumidor não sabe exatamente o que está comendo, um alerta feito há décadas, mas que ainda não recebeu a devida atenção. Fischler explicou que vivemos uma mudança de paradigma na ciência, especialmente nas áreas biológicas e da nutrição. Segundo ele, o novo paradigma é o da complexidade, que exige levar a sério a percepção das pessoas sobre o que consomem. “Precisamos entrar nesse novo paradigma da ciência com entusiasmo e confiança”, afirmou. 


Em uma análise cultural comparativa, Fischler trouxe o paradoxo entre França e Estados Unidos. Enquanto os franceses gastam, em média, 2h40 por dia bebendo e comendo, valorizando a refeição como momento de convívio e prazer, nos EUA o tempo gasto é muito menor e a prevalência da obesidade é significativamente maior. Nos Estados Unidos, explicou, as refeições são vistas como contratos individuais, marcadas por porções maiores, responsabilização pessoal e maximização das escolhas. Já na França, prevalece a ideia de comunhão, partilha e prazer coletivo, onde a comensalidade é central.

Ele mencionou ainda o Decreto de 2007 na França, que determinou a inclusão de instruções de alimentação saudável em mensagens publicitárias e promocionais. Também citou um estudo comparativo em seis países (França, Alemanha, Itália, EUA, Suíça e Inglaterra), que revelou diferentes formas de se relacionar com a alimentação: enquanto em países anglo-saxões prevalece a visão de nutrientes e escolhas individuais, na França predomina a percepção de refeição como partilha e comunhão.

Fischler refletiu sobre o processo de individualização acelerado pela tecnologia, que fragmenta a comensalidade: mesmo reunidos à mesa, nem sempre as pessoas comem a mesma comida ou conversam entre si. Ainda assim, ele lembrou que comer é simultaneamente íntimo e público, porque cada pedaço de comida ingerido resulta de um compartilhamento de recursos. “A comida se torna parte de você, se torna você. Comer tem a ver com viver, mas também com existir em sociedade. É uma atividade social, não apenas um processo fisiológico individual”, concluiu.

Já o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, reconhecido internacionalmente e listado entre os pesquisadores mais influentes do mundo, discutiu o papel das evidências científicas na transformação dos sistemas alimentares, durante a conferência. Monteiro atribuiu o crescimento acelerado da obesidade global ao aumento da oferta de alimentos criados artificialmente pela indústria, formulados para serem baratos, de sabor intenso e quase irresistíveis.

Segundo ele, a substituição de padrões tradicionais de alimentação pelo padrão ultraprocessado é uma das principais causas das pandemias relacionadas à dieta, como obesidade, diabetes, câncer de cólon e doença de Crohn. “Mais ultraprocessados na dieta significam múltiplos desequilíbrios nutricionais, excesso de calorias, açúcares e gorduras, ao mesmo tempo em que reduzem o consumo de frutas, legumes, fibras e proteínas”, explicou.

O pesquisador reforçou a definição de ultraprocessados como formulações industriais compostas por substâncias de baixo custo, com aditivos, aromatizantes e ingredientes de uso exclusivamente industrial, que substituem alimentos naturais e tradicionais. Essa estratégia, afirmou, é central para o modelo de negócios das grandes corporações do setor, voltado para maximizar lucros.

Os impactos não se restringem à saúde física, já que os ultraprocessados afetam hormônios, estão associados a doenças mentais e alteram múltiplos órgãos. “A exposição a esses alimentos deteriora a qualidade da dieta e gera desfechos que comprometem não apenas a saúde das pessoas, mas também a sustentabilidade dos sistemas alimentares e do planeta”, concluiu.

Encerrando o seminário, a vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Programa de Alimentação, Cultura e Saúde (Palin), Denise Oliveira e Silva, reforçou que o encontro representa não apenas uma resposta institucional, mas também um dever científico e social. “A gente coincide essas mudanças com a evolução das sociedades industriais. Esse evento é um marco para que possamos atender a uma demanda da instituição, mas é também um dever que nós, pesquisadores, temos para contribuir. Ainda há tempo para mudarmos isso. Que possamos ajudar a superar essa situação e cumprir o que buscamos: juntar ciência, pensar em regulação, em políticas públicas e em justiça social.”


O seminário foi transmitido ao vivo pelo YouTube da Fiocruz Brasília. Assista aqui 

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