Insegurança alimentar no Brasil é debatida durante seminário

Nathállia Gameiro 1 de setembro de 2022


Nathállia Gameiro e Heloísa Caixeta

 

Mais de 33 milhões de brasileiros estão em insegurança alimentar grave. O dado do Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil, divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, foi citado durante o seminário Fome no DF e no Brasil: uma consequência da Covid-19?, realizado na última segunda-feira (29/8) na Fiocruz Brasília.

 

A titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da Fiocruz Brasília, Tereza Campello, foi categórica ao afirmar que a fome no Brasil e no DF não é consequência da Covid-19. “Não dá para dizer que foi a pandemia. A Covid-19 teve um impacto e acirrou a situação de pobreza e fome, mas a situação atual do Brasil não pode ser explicada apenas pela pandemia. A crise que vivemos é anterior a ela”, afirmou. São anteriores à pandemia os quatro grandes ‘recordes’ vividos pelo país, que, de acordo com a pesquisadora, resultam do modelo vigente de produção: fome, desmatamento, aumento da produção de grãos e obesidade. Segundo Tereza, o Brasil tinha condições de enfrentar essa situação de outra forma, pois o país conta com um sistema público de saúde como o SUS, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e uma rede de segurança alimentar construída. Países que não tinham essa estrutura conseguiram se sair melhor na pandemia. 

 

Pesquisa global realizada pela Gallup, empresa de pesquisa de opinião dos Estados Unidos, mostra que, comparado a 120 países (em desenvolvimento e desenvolvidos), a insegurança alimentar no Brasil ultrapassou em quatro vezes a média global em 2021. O percentual de pessoas que não tiveram dinheiro para comer ou para alimentar suas famílias vem subindo nos últimos anos, como foi abordado durante o evento pela palestrante, ao afirmar que milhões de pessoas não conseguem fazer três refeições por dia. “São 65 milhões de brasileiros que não comem o suficiente por dia. Isso dá uma França inteira ou até mesmo uma Inglaterra inteira”, comparou.

 

Ela diferenciou três conceitos ligados ao tema: pobreza, desnutrição e fome. O primeiro é medido pela renda e o acesso a um conjunto de bens e direitos elementares, como educação, saúde e habitação. A desnutrição pode estar relacionada a uma situação pontual, como uma guerra ou um problema sério de saúde, que, por diferentes motivos, impede a pessoa de se alimentar de forma adequada. Já a fome é caracterizada pela falta de acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficiente. Uma parcela da população pode estar em situação de pobreza, e não vivenciar a fome, por exemplo, ou estar privada de outros direitos, mas ter acesso à alimentação.

 

Durante o seminário, também foi discutido o conceito de insegurança alimentar, criado em 2004, no Brasil. “Uma parcela da população que está em fome, pobreza e desnutrição está também em insegurança alimentar. É possível ter uma pessoa em situação de pobreza hoje e não saber se vai estar na próxima semana ou no próximo mês. Se eu não sei se vou ter essa mesma renda daqui a dois meses, já começo a mudar meus hábitos hoje”, explicou a pesquisadora, ao falar sobre os impactos dessa situação na saúde mental e nas escolhas alimentares.

 

A volta do Brasil ao Mapa da Fome das Nações Unidas foi outro tema em debate. Tereza reforçou que uma estratégia multidimensional, a integração de políticas continuadas e a discussão do direito humano à alimentação adequada são elementos essenciais para o enfrentamento da insegurança alimentar.

 

A vice-diretora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin), Denise Oliveira, ressaltou que a tríade fome, pobreza e desnutrição representa toda a desigualdade histórica racial ainda existente no Brasil. “Temos um país que carrega uma história de escravidão de mais de 400 anos. A nossa memória é muito mais da escravidão que da não escravidão. A ciência traz uma epidemiologia dessa desigualdade social e econômica, e isso se perpetua até na formação do Estado brasileiro. As questões da alimentação não geram só uma fome no sentido da carência de calorias ou nutrientes, elas geram guerras, desigualdades, egocentrismo. Assumir isso é considerar que ainda temos muitos desafios”, afirmou. Denise lembrou também que a Fiocruz tem um histórico de ativa participação nesse tema e o grande desafio atual é pensar que papel todos nós temos como coprodutores, cientistas ou cidadãos. O coordenador de Integração Estratégica da Fiocruz Brasília, Wagner Martins, destacou a atuação institucional no cumprimento da Agenda 2030, em especial no combate à fome e à pobreza, e na promoção da saúde e da educação.

 

A questão racial também esteve presente na fala do representante do Instituto Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), Renato Carvalheira. Ele explicou a forma como as pesquisas são feitas e analisadas pelo Instituto, e destacou que a escala brasileira é utilizada como exemplo por outros países. “A fome tem cara e endereço. Geralmente de uma mãe, negra ou parda, da periferia ou da área rural, e que chefia a família”, detalhou.

 

Durante o seminário, foi lançado o livro Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, organizado pelas pesquisadoras Ana Paula Bortoletto e Tereza Campello. A obra recupera e atualiza as análises da publicação “Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço”, clássico do pensamento nacional publicado há 75 anos.

 

Participaram da mesa de abertura a presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea-DF), Sheila Lima, o representante do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), José Ivan Mayer, e o Secretário Executivo de Desenvolvimento Social do Distrito Federal, Jean Rates. Promovido pelo Colaboratório de Ciência, Tecnologia, Inovação e Sociedade (CTIS), em parceria com a Cátedra Josué de Castro/USP, o seminário Fome no DF e no Brasil: uma consequência da Covid-19? foi realizado de forma híbrida, presencial e online, e pode ser assistido aqui.

 

Diálogos para o enfrentamento da fome no DF

Como parte da programação do evento, foi realizada na manhã de segunda-feira (29/8) a oficina Diálogos para o Enfrentamento da Fome no Distrito Federal. O encontro reuniu cerca de 25 pessoas para pensar em estratégias e fazer um levantamento de fatores críticos em relação à fome e à insegurança alimentar no DF, além de criar cenários possíveis e soluções viáveis para a realização das ações. “O objetivo desta oficina é articular uma rede para o enfrentamento da fome no DF. Nós resgatamos os trabalhos que têm sido feitos e começamos a dar uma amplitude com movimentos que possam se somar às ações no território”, avaliou Wagner Martins, coordenador do Colaboratório CTIS.

 

Para Lidiane de Matos Pires, da Diretoria de Segurança Alimentar e Nutricional das Centrais de Abastecimento do Distrito Federal (Ceasa-DF), a oficina foi um momento de planejar com estratégia. “É importante conhecer como as diversas frentes estão trabalhando e fazer um planejamento. Fiz questão de estar presente para aprender com experiências de diversas áreas”, revelou.

 

A Fiocruz Brasília está engajada desde 2012 em ações para a diminuição das desigualdades. Mais recentemente, tem atuado em diversas frentes para o combate à fome no Brasil e no Distrito Federal, com ações da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030) e o Pacto pelos 15% com Fome. “Este é um momento de desafio. Hoje estamos diante de um sistema que traz uma visão corporativa onde a fome tem o seu lugar. E lutar para que a gente saia deste lugar é o nosso grande desafio como nação”, afirmou Denise Oliveira, coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA).


Foto destaque: Unidos do Bem

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