Presidente da Fiocruz fala sobre inovação

Fernanda Marques 1 de agosto de 2022


Maior sistema universal do mundo, 10% do PIB, 20 milhões de empregos diretos e indiretos, 35% de participação na pesquisa nacional, alto potencial para estimular a economia, área-chave para a 4ª Revolução Industrial. Estas são características da saúde no Brasil. Mas ela também se caracteriza por um elevado déficit comercial na área de equipamentos, vacinas e medicamentos, dependência de importação de ingredientes farmacêuticos ativos de 90%, e instabilidade no investimento público em ciência, tecnologia e inovação, com redução dos recursos disponíveis. O cenário foi apresentado pela presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, durante a mesa redonda virtual “Pesquisa e patentes em novos medicamentos e vacinas para Covid-19 e outras emergências sanitárias”, realizada no dia 28 de julho como parte da programação da 74ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência (SBPC).

 

Diante desse quadro, Nísia trouxe a necessidade de novos modelos de políticas públicas, compreendendo o Sistema Único de Saúde (SUS) como uma política social e também um espaço de ciência, tecnologia, inovação e desenvolvimento industrial. A presidente da Fiocruz lembrou o enfrentamento da Covid-19, em que toda a capacidade institucional e sua rede de cooperação foram mobilizadas. “Conseguimos desenvolver e produzir vacinas em tempo recorde, mas isso não aconteceu do zero. Já havia plataformas tecnológicas em estudo de forma continuada”, destacou, reforçando a importância de investimentos robustos e permanentes em pesquisa.

 

Ela também lembrou que, embora seja inegável que as vacinas estejam salvando vidas, o acesso continua bastante desigual – em países da África, as coberturas vacinais ainda são muito baixas. Expor essa vulnerabilidade foi um dos tantos impactos da pandemia. Nísia afirmou que é necessário repactuar convenções internacionais tendo como foco a inovação com interesse social: reduzir o período de proteção das patentes, evitar proteções abusivas e, em situações de emergência, considerar vacinas e outros insumos como bens públicos. A presidente da Fiocruz apontou essa necessidade não só para a recuperação do grave quadro de desigualdade social acentuado pela Covid-19, como para a preparação da sociedade frente a novas emergências.

 

Segundo dados apresentados por Nísia, 88% de todas as patentes em saúde estão concentradas em 10 países. Em oposição a esse cenário, ela defendeu investimentos em pesquisa e desenvolvimento com foco no interesse público global, priorizando as necessidades de saúde através de processos inclusivos, além de incentivar o compartilhamento de conhecimentos, tecnologias e produtos, de modo que os benefícios cheguem a todos de forma mais equitativa.

 

“Uma inovação que não alcança quem mais precisa dela cumpre seu propósito?”. Com essa provocação, Felipe Carvalho, representante da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), iniciou sua palestra. Logo em seguida explicitou que muitos pacientes morrem não porque têm doenças incuráveis, mas porque não são consumidores relevantes para as indústrias farmacêuticas. Ele citou exemplos de situações em que os preços de medicamentos ou vacinas  impuseram barreiras à atuação das equipes de MSF, como o tratamento do HIV/Aids na África no Sul, em 2000, e a vacinação de crianças contra pneumonia em campo de refugiados no Sudão do Sul, em 2013. “No caso do ebola em Serra Leoa, em 2014, não havia medicamentos nem vacinas porque a doença afetava predominantemente populações da África; isso só mudou depois que casos de ebola começaram a aparecer em países mais ricos”, disse Felipe.

 

Outro exemplo trazido pelo representante de MSF foi o caso do medicamento Gleevec, usado no tratamento da leucemia mieloide crônica. Conforme dados apresentados por Felipe, o medicamento foi criado a partir de pesquisa básica em instituições públicas, e seu desenvolvimento e aprovação contou com investimentos de 96 milhões de dólares da indústria farmacêutica. Porém, as vendas desse produto, somente em 2012, somaram 4,6 bilhões de dólares. “A cada 13 dias, a indústria recuperava o investimento feito em pesquisa e desenvolvimento”, resumiu o palestrante, sublinhando ainda que a patente teve validade de 20 anos e que o primeiro hospital público a oferecer o tratamento com Gleevec no Brasil acumulou, em 2010, uma dívida de 6,5 milhões de reais.

 

“As empresas têm muita influência nas decisões, com um desequilíbrio de poder que faz com que mecanismos para acesso mais equitativo não consigam avançar”, lamentou Felipe. “É uma lógica incongruente que vacinas e medicamentos desenvolvidos a partir de pesquisas com recursos públicos depois se tornem propriedade de uma empresa. É preciso exigir condições mais justas de compartilhamento”, alertou.  

 

Organizada e transmitida pelo YouTube da Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTE), a mesa redonda foi conduzida pelo professor e pesquisador João Batista Calixto, diretor do Centro de Inovação em Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP). Com a parceria da Fiocruz e da Microbiológica, sua equipe tem estudado novos compostos para o combate à Covid-19, e apresentou os principais resultados desse trabalho. A equipe já sintetizou mais de 200 compostos e fez mais de 4 mil testes in vitro, identificando que quatro desses compostos foram capazes de inibir a replicação viral. Um desses compostos já tem dossiê pré-clínico completo, e o dossiê de outro composto, que parece ainda mais promissor, está em finalização. Após essa fase pré-clínica, a expectativa é que se iniciem os estudos clínicos de fase 1. São muitas as etapas de pesquisa. “E esse trabalho não começou agora; já havia um acúmulo de experiências anteriores”, assinalou o pesquisador. “Investimento em pesquisa básica e inovação é de longo prazo. Isso mostra o quanto devemos avançar e a importância das parcerias”, concluiu.    

 

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