Que capacitismo é este?

Fernanda Marques 8 de dezembro de 2023


Anna Júlia, do Los Hermanos. Pelados em Santos, do Mamonas Assassinas. Meu erro, dos Paralamas do Sucesso. Que país é este, do Legião Urbana. As músicas fazem parte do repertório da banda Toque Especial, que se apresentou nesta quinta-feira (7/12) no auditório externo da Fiocruz Brasília. Os integrantes do conjunto são pessoas com diferentes deficiências. Sim, é verdade. Mas a mensagem principal do show foi a de que eles são músicos, pois não é a deficiência que os define. “A gente quer ser tratado como pessoa, não como incapaz”, disse o vocalista, Márcio Glayton, durante o debate do painel “Cuidado para as pessoas com deficiência e seus cuidadores”. O evento foi organizado pelo Coletivo de Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência da Fiocruz Brasília.

 

Cantar, tocar um instrumento musical, estudar, trabalhar, namorar, cuidar dos filhos. Por que a gente ainda se surpreende quando ouve relatos de pessoas com deficiência que fazem coisas “normais”? A provocação foi feita pela diretora dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Naira Rodrigues, uma das convidadas do painel. A resposta, segundo Naira, está associada ao fato de que vivemos em uma sociedade capacitista, que discrimina as pessoas com deficiências e as reduz às suas incapacidades. Durante o evento, os participantes destacaram a urgência de desconstruir preconceitos e construir, de forma coletiva, políticas públicas de cuidado que não deixem ninguém para trás. “Existem diferentes experiências de deficiência e é preciso reconhecer o direito à diferença, princípio básico para que a gente possa existir em qualquer lugar”, afirmou Naira, que tem deficiência visual.

 

Do Coletivo de Mulheres com Deficiência do Distrito Federal, Agna Cruz compartilhou sua vivência durante o painel. Aos 29 anos, na Bahia, sofreu uma isquemia medular que a colocou numa cadeira de rodas e mudou sua vida e a da família. Era casada, mas foi a mãe quem assumiu os cuidados com ela. Na maior parte do tempo, eram só as duas. “Antes, a gente não tinha a percepção de como a casa e a cidade não têm acessibilidade”, contou Agna, que era cuidada, mas também se preocupava em cuidar da saúde mental da mãe, sobrecarregada com um trabalho invisibilizado. “Ela sofria pelas dificuldades que eu teria de enfrentar”, lembrou. Agna foi, então, chamada para um tratamento na Rede Sarah, em Brasília, e viu sua vida mudar novamente. Lá ela conheceu profissionais de saúde com deficiência e essa representatividade foi fundamental para que ela se sentisse mais confiante e conquistasse mais autonomia. 

 

Seu primeiro trabalho como mulher cadeirante foi na 112 Sul, onde hoje funciona a Secretaria da Pessoa com Deficiência. Sua tarefa era fazer a ponte entre as pessoas com deficiência que enviavam seus currículos e as empresas que queriam contratá-las, mas havia ali um abismo. “As empresas queriam contratar surdos que ouvissem, cegos que falassem e cadeirantes que andassem”, ironizou, explicando sua motivação para o envolvimento com movimentos sociais e políticas públicas na luta pelos diretos das pessoas com deficiência. Agna destacou que não podemos naturalizar as situações cotidianas de exclusão – colegas cadeirantes se atrasaram para o evento na Fiocruz Brasília porque o elevador da estação do metrô estava com defeito. “Precisamos nos indignar todos os dias e estar atentos 24 horas às perdas de direito”, convocou. 

 

Já a psicóloga Karla Garcia Luiz, integrante do Núcleo de Estudos da Deficiência da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), trouxe uma contribuição teórica para dialogar com a realidade das pessoas com deficiência. Ela apresentou quatro modelos de compreensão da deficiência: o religioso, que enquadra a deficiência como uma espécie de castigo; o caritativo, associado ao assistencialismo; o médico, com foco no conserto de corpos considerados fora do padrão de normalidade; e, finalmente, o social, que entende que o problema não é a deficiência, mas as barreiras que existem na sociedade. A palestrante dividiu o modelo social em duas gerações: a primeira, com conquistas ainda restritas ao homem com deficiência, e a segunda, onde se encaixam os estudos feministas e que consideram outros marcadores sociais da desigualdade. “É diferente ser pessoa com deficiência em um grande centro urbano e em uma comunidade ribeirinha. A exclusão é ainda maior se a pessoa com deficiência é uma pessoa trans”, afirmou Karla, sublinhando que essas questões precisam ser levadas em conta na formulação e implantação de políticas públicas. 

 

Especificamente em relação ao cuidado, Karla, que é doutora em psicologia social e apresenta mobilidade reduzida, chamou atenção para o mito da independência. “O cuidado faz parte da condição humana; ele está presente em todas as trajetórias, e não apenas nas nossas, que somos pessoas com deficiência. O que existe é uma interdependência, porque somos dependentes uns dos outros. Mas persiste a ideia de que quem precisa de cuidado é impróprio para o capital”, pontuou. “A nossa dependência deve ser vivida de modo digno, com base em políticas públicas e não na sobrecarga de mães e mulheres cuidadoras e invisibilizadas. Quem é cuidado tem direito a um projeto de vida e a tomar suas próprias decisões”, defendeu. De acordo com a palestrante, reconhecer esses aspectos é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade não capacitista. 

 

As mudanças, entretanto, são demoradas. “O capacitismo está enraizado na sociedade e os processos de mudança de percepção e de atitude são lentos. Precisamos estar atentos, para não haver retrocessos, e ser persistentes, para continuar avançando”, disse a diretora da Escola de Governo Fiocruz – Brasília, Luciana Sepúlveda. “Em nossas vivências institucionais, devemos ser cada vez mais sensíveis a esse aprendizado, que é uma desconstrução. O que os participantes compartilharam conosco hoje é uma lição de ver a vida muito maior do que a gente costuma enxergar”, concluiu a vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira.

 

O evento, em alusão ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, comemorado em 3 de dezembro, foi conduzido pelo representante do Coletivo de Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência da Fiocruz Brasília, Fábio Barcelos. Além do show da banda Toque Especial e do painel “Cuidado para as pessoas com deficiência e seus cuidadores”, na parte da manhã, houve encontro de troca de experiências sobre cuidado e apresentação do Teatro de Bonecos Mamulengos, na parte da tarde. Confira aqui a gravação das palestras da parte da manhã, e neste link o encerramento da atividade. 

 

Confira aqui as fotos da abertura do evento. 

 

Leia mais:

Conferência Livre discute saúde da pessoa com deficiência (27/04/2023)

16% da população mundial têm alguma deficiência (27/03/2023)

“Não devemos ter um olhar capacitista” (07/03/2023)

Inclusão como compromisso coletivo e não luta individual (05/12/2022)

Evento debate direitos da pessoa com deficiência (22/09/2022)

Manifesto marca encerramento de seminário sobre deficiência (18/04/2022)

Fala aê, especialista: o acesso à saúde da pessoa com deficiência (20/08/2021)

Artigo discute o desafio da inclusão de pessoas com deficiência no contexto da Covid-19 (11/01/2021)

“A diferença não deve ser aquilo que nos afasta, mas o que nos aproxima” (03/12/2020)

Evento debate desafios da inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho e no ensino superior (05/12/2019)