“O mundo não é e não será o mesmo depois da pandemia”

Fernanda Marques 1 de outubro de 2021


Médico sanitarista, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Francisco Campos foi responsável pela implantação da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS), estando à frente de sua Secretaria Executiva de 2011 a 2017. Atualmente especialista em Políticas de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Fiocruz, foi secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde entre 2005 e 2011.

 

Nesta entrevista, a partir de sua grande experiência no campo do desenvolvimento de recursos humanos em saúde, Campos relembra momentos marcantes de sua trajetória, comenta os desafios do SUS, analisa o contexto da pandemia e o papel que tem sido desempenhado pela Fiocruz. “A Fiocruz, dentro do SUS, talvez tenha sido a instituição que mais se fortaleceu, por sua capacidade de colocar as peças juntas”, disse nesta entrevista para o “Fala aê – 45 anos da Fiocruz Brasília”.

 

 

De que forma a sua trajetória se encontra com a da Fiocruz Brasília?

Minha trajetória com a Fundação Oswaldo Cruz vem de muito tempo. Meu primeiro emprego na vida foi na Fiocruz. Eu era da turma de residentes do Sergio Arouca quando ele estava em Campinas. Em 1975, por causa de uma crise em Campinas, o grupo foi para o primeiro curso de saúde pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro, depois do Massacre de Manguinhos. Foi um curso bastante interessante e, no ano seguinte, o Arouca foi responsável pela criação do Programa de Estudos Sociais em Saúde e Programa de Estudos Epidemiológicos, na Ensp. Em 1976, fui contratado para trabalhar nessa pesquisa. Depois, acabei indo para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), meu segundo emprego na vida. Em 1985, vim para a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério da Saúde, com o ministro Carlos Santana e o coordenador Eleutério Rodriguez Neto. Já naquele momento se pensava que a Fiocruz em Brasília poderia ser mais do que uma simples representação, mas de fato uma unidade técnica, muito próxima da Universidade de Brasília (UnB). Alguns anos depois, com Paulo Buss presidente da Fiocruz, conversamos muito sobre essa possibilidade e sobre uma Escola de Governo. De volta à mesma Secretaria do Ministério, me lembro de muitas conversas com os ministros Saraiva, Agenor e Temporão para acelerar esse passo.

 

E a proposta da UNA-SUS?

Já na Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação do Ministério, tivemos a ideia de uma estrutura para a educação permanente dos profissionais de saúde do Brasil, que não fosse uma universidade corporativa dentro do Ministério, mas uma rede entre universidades. Naquele momento, o grande desafio era especializar profissionais em Atenção Primária à Saúde: havia por volta de 32 mil equipes de Saúde da Família, e menos de 1% dos profissionais com diploma de especialista. Várias universidades no Brasil ofereciam cursos na área, então fizemos uma convergência. Esse arranjo acabou se tornando a Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS), o que coloca a Fiocruz Brasília no nosso caminho de novo, porque o novo prédio da unidade, no campus da UnB, estava ficando pronto e abrigou a UNA-SUS. E não foi apenas o espaço físico: o decreto de criação, em 2010, estabeleceu que a Secretaria Executiva da UNA-SUS fosse sediada na Fiocruz. Foi um arranjo de sucesso e, mais de dez anos depois, continua sendo, mesmo em conjunturas tão adversas como as atuais.

 

Quais suas memórias mais marcantes sobre a criação da UNA-SUS?

A gente conversava com as universidades, por volta de 2008, sobre a necessidade de capacitar as equipes. Tivemos uma reunião com reitores de universidades federais brasileiras em que mostrei a premência de se formar mais profissionais de saúde da família. Eles responderam que poderiam aumentar as vagas nos cursos em algumas dezenas. Fui fazendo a conta e, com esse ritmo de oferta, demoraríamos 120 anos para suprir as necessidades. A proposta da UNA-SUS era formar milhares de profissionais, e havia recursos. Em uma reação inédita, dez universidades, que já tinham regulamentado a sua Educação a Distância (EAD), aceitaram o nosso desafio.

 

Quais os principais desafios, hoje, para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores da saúde?

A distância entre a academia e o serviço sempre foi o principal problema no Brasil e no mundo. Você forma profissionais que vão trabalhar no século 21, com professores do século 20 e escolas do século 19. Sempre fomos contra, porque a educação tem que ser mais representativa das condições de vida e saúde da população. Quase sempre o ensino superior foi muito distante da realidade do serviço. E, se você olhar para o nível técnico, lá está presente uma força de trabalho feminina, desvalorizada e não reconhecida. A força de trabalho em saúde hoje no Brasil é 80% feminina. Mulheres que foram fortemente sobrecarregadas de trabalho durante a pandemia.

 

Quais os aprendizados trazidos com a pandemia para o campo da educação em saúde?

O mundo não é o mesmo e não será o mesmo depois dessa catástrofe da pandemia, particularmente no Brasil. Mas ocorreram alguns aprendizados interessantes. Por exemplo, a pandemia resgatou uma reflexão antiga sobre o modelo de regulação profissional em saúde, o ato privativo, que estabelece que determinados procedimentos só podem ser realizados exclusivamente por uma categoria ou especialidade médica, algo que se encontra em desuso em vários países. As fronteiras do conhecimento são muito mais maleáveis e têm que ser encaradas de acordo com as realidades locais e regionais. Sob certas necessidades de atendimento da população, os procedimentos não podem ser propriedade de um tal profissional. Acho que a pandemia deixou isso bem claro. Outro aspecto foi o reconhecimento da importância da telessaúde. Eu fui a pessoa no Ministério da Saúde que propôs o programa de telessaúde, e, naquele momento, tivemos uma tremenda dificuldade junto às entidades de classe para conseguir regulamentar. Estive com vários ministros visitando postos de telessaúde no interior do país, onde ela era capaz de resolver diversas situações de saúde. Mas havia muita resistência das categorias médicas. A pandemia permitiu que esse processo de aceitação avançasse mais rapidamente. Acho que não tem mais volta. Mesmo depois que a pandemia acabar, vai continuar tendo telessaúde, porque as pessoas perceberam os benefícios. E, se ainda havia preconceito contra a EAD, ele caiu por terra. Acho que o crescimento da circulação de informações é central nesse aspecto da educação. Com esse acesso, a assimetria entre quem sabe e quem não sabe é cada dia menor. A aplicação da inteligência artificial em medicina também trouxe avanços extraordinários. É preciso um profissional que junte as informações, junto às peças, e dê sentido a tudo isso.

 

Na sua visão, de que forma o coletivo da Fiocruz Brasília tem contribuído para o enfrentamento da atual crise social e sanitária?

A Fiocruz deu uma contribuição muito grande. Não posso pensar a Fiocruz Brasília separada do todo. A Fiocruz, dentro do SUS, talvez tenha sido a instituição que mais se fortaleceu, por sua capacidade de colocar as peças juntas. Pela produção da vacina, mas não só por isso. Quando uma pesquisadora como a Margareth Dalcolmo está em programas de tv todos os dias ou quando o Boletim InfoGripe divulga suas análises, a gente está colocando junto produção, conhecimento, pesquisa e educação. A Fiocruz Brasília tem trabalhado muito em pesquisas na área do desenvolvimento social e dos territórios. A EGF – Fiocruz tem o seu mestrado profissional, as suas residências etc., mas ainda pode avançar mais.

 

Que aspectos considera importantes discutir para a consolidação e o fortalecimento do SUS?

O SUS é subfinanciado e subgerenciado. O gasto direto das pessoas na saúde é muito grande comparado com o gasto público. Nós chegamos a ter bons programas de vacinação, transplante, DST/Aids etc. É fundamental uma atenção primária que funcione bem para que as demandas pelos serviços de média e alta complexidade, que são muito caros, não aumentem. Se, durante a pandemia, tratamentos de câncer e outros agravos foram interrompidos, isso vai ser um grande problema depois. Tem problema gerencial e de subfinanciamento, não é um ou outro, são os dois.

 

O que destacaria em relação aos três eixos das comemorações dos 45 anos da Fiocruz Brasília: solidariedade, amorosidade e criatividade?

Solidariedade é ninguém ser deixado para trás, mas as desigualdades, no Brasil e no mundo, ainda são enormes. Até pouco tempo atrás, o Haiti ainda não tinha recebido nenhuma vacina. No Brasil, enquanto a maioria das pessoas empobrece, a fortuna dos dez mais ricos do país cresce incomensuravelmente. Amorosidade é você estar em um ambiente onde você se sinta feliz e recompensado na relação com os outros. Criatividade é não ficar apenas no seu quadrado, cumprindo burocraticamente suas funções. A Fiocruz, que nasceu como uma instituição para fazer frente às pestes que assolavam o Rio de Janeiro na virada do século 20, se tornou uma referência nacional e internacional nas diversas áreas da saúde pública com gestões pautadas nisso: solidariedade, amorosidade e criatividade.