“Os jovens precisam falar do SUS com mais propriedade”

Fernando Pinto 27 de agosto de 2021


Há 34 anos na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Denise Oliveira e Silva, pesquisadora, docente e vice-diretora da Fiocruz Brasília, contou um pouco de sua trajetória na instituição e de sua chegada a Brasília. Então professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), ela veio para a capital federal em 1996, quando assumiu a gestão do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan). Nesta entrevista da série especial “Fala aê – 45 anos da Fiocruz Brasília”, Denise falou sobre os desafios de ser mulher, negra e cientista no Brasil, e sobre sua atuação na pesquisa, na gestão e no ensino da Fiocruz Brasília.

 

 

 

Como a Fiocruz Brasília entrou na sua vida profissional?  

Com as vindas constantes a Brasília para congressos e cursos, eu sabia, desde meados de 1987, da existência do escritório da Fundação na capital federal, na época ainda conhecido como Coordenação Regional de Brasília (Coreb). Mas minha aproximação com a Fiocruz Brasília ocorreu precisamente a partir de 1996, quando vim para Brasília assumir a gestão do Inan, que ficava no mesmo prédio da então Coreb. Por volta de 1999, após exercer vários cargos estratégicos no governo, resolvi retomar meu vínculo institucional com a Fiocruz, me apresentando à direção da Fiocruz Brasília, que, na época, considerou meu currículo muito técnico para as ações realizadas na unidade. Somente em 2001, a convite do então presidente da Fiocruz, Paulo Buss, ingressei na unidade, como assessora técnica da diretora Fabíola Aguiar Lemos. Em 2003, ao se afastar do cargo, Fabíola me indicou como diretora substituta interina e acabei permanecendo por cinco anos na direção da unidade. Foi assim a minha entrada na Fiocruz Brasília, onde permaneço até hoje como pesquisadora, docente e gestora, atualmente no cargo de vice-diretora da unidade.

 

Você foi diretora da unidade. Quais os desafios de exercer essa função sendo mulher?

A gente vive a contradição e o desafio no dia a dia; essa é uma questão que se aprende diariamente. Não há dúvida de que, ao longo desses 34 anos como funcionária da Fiocruz, houve um nítido crescimento da participação das mulheres e, sobretudo, das mulheres negras. Isso mostra que a instituição vem, de fato, tentando superar toda essa mácula histórica e estrutural que a sociedade brasileira ainda tem, baseada no racismo e no seu dilema de gênero. A Fiocruz, diferente de outros órgãos, faz um esforço muito grande para superar os desafios do sexismo, do racismo e de outras formas de discriminação. A Fundação acolhe brasileiros e brasileiras de todas as etnias e classes sociais, que vão ainda vivenciar dificuldades com isso, mas eu acho que tem um elemento muito importante, que é o fato de a instituição assumir as contradições e assumir também ações de superação dessas contradições. 

 

E os desafios de ser mulher, negra e pesquisadora no Brasil?

Primeiro, devemos assumir que o país ainda vive com toda a sua estrutura de desenvolvimento econômico e social baseada no racismo e na desigualdade social. Uma vez assumida essa situação, temos o compromisso de superá-la, como nação. Eu poderia falar por horas sobre esses desafios, que estão relacionados ao racismo histórico. O Brasil ainda tem na sua essência essa nódoa; ele foi o país que manteve a escravidão por mais tempo. A cor da pele é uma questão muito emblemática no Brasil: aqui, conforme a sua cor da pele escurece, mais problemas você vai ter. E é óbvio que uma mulher negra como eu vive as consequências disso.

 

Ainda temos um longo caminho para superar…

Junto com meus irmãos negros e negras, temos destacado a importância do país se reconhecer racista e, sobretudo, criar estratégias para a superação disso. A pesquisa tem um papel fundamental, porque ela contribui para o enfrentamento de um dos principais problemas do racismo, que é a invisibilidade dos agravos que ele causa. O pesquisador negro, hoje, tem mesmo um papel de militante, sem sombra de dúvida. Em outros países também vejo cientistas negros atuarem com a pesquisa militante, que tem esse papel de trazer luz ao que está invisível e ao que o racismo quer naturalizar, e de permitir que a gente consiga reconhecer o problema. Outro ponto é ser honesto consigo mesmo e, como nação, acho que é o caminho que nós temos que seguir. Tenho pensado muito nessa perspectiva de trabalhar com a verdade, doa ela a quem doer, e encará-la da forma como vier. A verdade precisa aparecer para que a gente se supere e siga como uma nação multirracial orgulhosa, entendendo isso como uma força e não como uma fraqueza, ou não como algo que, por exemplo, faz muitos ainda afirmarem que o Brasil não avança porque ele tem na sua origem a ‘indolência’ do negro e do indígena. A verdade de ser é um exercício para se fazer todos os dias e, se nós pudéssemos fazer isso como nação, talvez fôssemos mais bem sucedidos do que estamos hoje.

 

Como vê a pesquisa na Fiocruz Brasília?

A Fiocruz Brasília nasce como uma assessoria da Presidência da Fundação. Pelo próprio desenho organizacional, trazer a pesquisa para a unidade foi um dos nossos maiores desafios; apesar dos avanços, ainda é um desafio constante mostrar nossa produção de conhecimento como uma atividade finalística. Somos uma unidade híbrida por estar em Brasília, onde estão todos os Poderes. Temos uma Escola de Governo, e não tem como fazer uma Escola sem que haja um vínculo de produção de conhecimento, fundamentalmente pelo experimento e pela pesquisa. Existe uma atuação muito significativa da nossa unidade no campo da pesquisa em políticas públicas aplicadas.

 

Como a Fiocruz Brasília pode colaborar com o futuro da saúde pública no país?

A Fiocruz Brasília pode, deve e já está colaborando: uma boa parte da nossa produção de conhecimento em pesquisa é potencialmente voltada para políticas públicas aplicadas. Essa é uma perspectiva muito promissora, pois existem na Fiocruz Brasília muitos projetos sendo desenvolvidos com base no fortalecimento do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), que tem sido atacado por diversos interesses financeiros ou políticos. Então, devemos mostrar que, quase 40 anos atrás, o Brasil acertou quando propôs a criação do SUS. Os jovens que hoje estão na Fiocruz precisam falar do SUS com mais propriedade, e não como um discurso vazio, que pode ser considerado politicamente correto, mas que não contribui, de fato, para fazer avançar a saúde pública no Brasil.

 

Quais foram os momentos mais marcantes em sua trajetória na Fiocruz Brasília?

A principal questão que eu posso apontar é o meu amadurecimento. Cheguei à Fiocruz com 24 anos, e já estou com 60. Na minha trajetória profissional, fiquei apenas dez anos fora da Fundação, quando assumi outros cargos, mas nunca me distanciei da Fiocruz, onde sou professora e pesquisadora. Essa é uma dádiva que eu consigo identificar, a de amadurecer com a instituição. Ao longo da minha vida, as coisas foram se misturando, o meu amadurecimento como mulher, mãe e pesquisadora, uma mistura que foi muito boa para mim. Sou muito grata à Fiocruz por me permitir buscar a minha verdade, me autoconhecer, ser melhor como ser humano e trazer o melhor de mim para o outro. Do fato de ter sido diretora, talvez a primeira diretora negra de uma unidade, vou carregar toda essa amorosidade vivida aqui como uma grande dádiva que recebi nessa existência.

 

Como definiria, em uma palavra, a sua trajetória na Fiocruz Brasília?

Gratidão. Sou muito grata pelo que aprendi e vivo aqui. Espero que a minha passagem por aqui tenha deixado um legado importante para a instituição.