Fala aê, mestre: SRT e os desafios da privatização da gestão

Fernanda Marques 9 de dezembro de 2023


Assegurar o direito à moradia e inclusão social para pessoas que passaram muitos anos em internação psiquiátrica e não contam com uma rede de apoio familiar ou comunitária: este é o propósito dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), que foram tema de uma dissertação defendida no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Egressa da turma especial Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho – Ceará, a autora da pesquisa, a assistente social Halina Cavalcanti Gouveia, estudou esses Serviços no município do Recife, onde, desde 2011, eles passaram a ser geridos por convênios com entidades privadas sem fins lucrativos. “Hoje são 50 dispositivos em todas as regiões da cidade, divididos sob a gestão de duas instituições filantrópicas”, conta a nova mestre. “O objetivo da pesquisa foi analisar as repercussões da privatização da gestão dos Serviços Residenciais Terapêuticos no município de Recife a partir de três principais eixos: alterações na gestão do trabalho, alterações no paradigma orientador da gestão e identificação das possíveis consequências para a promoção da autonomia dos moradores desses Serviços”, explica. Para o estudo, Halina realizou análise documental, grupos focais e entrevistas. “Foram observadas a inserção de uma lógica gerencial e a consequente burocratização do cuidado, associadas a uma precarização do trabalho. Tais elementos se apresentam como dificultadores para a construção de intervenções promotoras de autonomia, e enfraquecem o paradigma da atenção psicossocial”, conclui. Nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”, a assistente social defende a importância dos Serviços Residenciais Terapêuticos e compartilha outros resultados e conclusões de sua pesquisa. 

 

O que são Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)?

Halina Cavalcanti: Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) foram uma das principais respostas do Estado brasileiro à questão da moradia para pessoas com longos anos de internação psiquiátrica e redes de apoio social e familiar vulneráveis. Como política pública federal, os SRT, também chamados Residências Terapêuticas, surgiram por meio da Portaria GM/MS nº 106/2000, em um momento de ampliação e complexificação da rede de serviços de saúde mental no país. As primeiras Residências Terapêuticas surgiram em Trieste, na Itália. Inicialmente, era previsto que prédios dentro dos hospitais fossem reestruturados como moradias, mas, com o avanço da política e dos recursos financeiros, foi iniciado o processo em que pessoas advindas de longo internamento passariam a morar em apartamentos ou casas na comunidade. Aqui no Brasil, ainda antes da legislação, na década de 1990, já haviam experiências importantes nesse sentido em alguns estados, como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa época, eram chamadas de lares abrigados, pensões protegidas ou moradias extra-hospitalares, e foram decisivas para a criação da política pública.

 

Quem tem direito aos Serviços Residenciais Terapêuticos?

Halina Cavalcanti: Eles são dispositivos construídos para acolher pessoas com histórico de institucionalização em hospitais psiquiátricos, ou seja, pessoas que passaram a maior parte de suas vidas isoladas, excluídas do convívio em sociedade, sem rede familiar e comunitária, e que se depararam com o desafio concreto de não ter um lugar de moradia. De acordo com a Portaria ministerial, são “moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares, e que viabilizem sua inserção social”.

 

Qual o papel do Sistema Único de Saúde (SUS) nesses Serviços?

Halina Cavalcanti: Os Serviços Residenciais Terapêuticos surgiram dentro da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Embora tenha como horizonte uma mudança estrutural na sociedade, esse processo, até os dias atuais, tem o protagonismo dos trabalhadores e usuários da rede de serviços do SUS. Hoje, os Serviços Residenciais Terapêuticos se inserem como dispositivos de saúde dentro do eixo da desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS. O paradigma manicomial foi executado de forma hegemônica durante anos no país, permitindo graves violações de direitos a partir de um discurso de suposto cuidado. O SUS iniciou um processo de recondução da política de saúde com dispositivos de suporte à moradia e convivência, articulados à garantia do cuidado, na perspectiva da atenção psicossocial. Apesar desse avanço histórico, é imperativo a construção de políticas públicas efetivamente intersetoriais para a continuidade e o desenvolvimento da desinstitucionalização no país, apontando para o debate de novas formulações nacionais sobre moradia e renda para essa população.

 

Como os SRT contribuem para a inserção social das pessoas com transtornos mentais?

Halina Cavalcanti: Para as pessoas que residem nos Serviços, o respeito à moradia, à circulação na cidade, à singularidade, à autonomia e à possibilidade de escolher e decidir sobre pequenos e grandes aspectos de sua vida é um direito conquistado e colocado em prática a partir da experiência vivida. Um Serviço Residencial Terapêutico não é apenas uma casa onde moram pessoas com histórico de longa internação em hospitais psiquiátricos; ele é caracterizado também pela forma como se dá a intervenção de trabalhadores e gestores, e como as relações de poder são estabelecidas, ou melhor, como essas relações são desconstruídas e se distanciam daquela lógica utilizada nas instituições fechadas. Os Serviços Residenciais Terapêuticos se sustentam no paradigma da atenção psicossocial; na inserção comunitária; no olhar técnico que considera a subjetividade; no reconhecimento dos tempos, desejos e possibilidades singulares de cada grupo ou indivíduo; na criatividade para a construção de projetos terapêuticos igualmente singulares; e na disponibilidade para trocas entre os sujeitos que ali circulam.

 

Na sua pesquisa, você analisou as repercussões da privatização da gestão dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Recife (PE). Como você avalia a atuação desses Serviços sob a gestão das entidades privadas?

Halina Cavalcanti: A tensão entre as lógicas pública e privada tem feito com que elas convivam, de forma mais ou menos articulada, na execução cotidiana desses Serviços. Os dois núcleos gestores (um vinculado à gestão municipal e outra à gestão conveniada) têm se mostrado bastante presentes na organização de fluxos e orientações, cada um a partir de suas atribuições, porém de forma fragmentada e, por vezes, contraditória. As equipes identificam duas coordenações distintas a quem devem dar retornos e prestar contas do trabalho realizado em formatos e tempos diferentes. A lógica gerencial se faz presente de maneira mais profunda no âmbito de um processo de trabalho marcado pelo cuidado subjetivo, pelas práticas criativas e pelas tecnologias leves, centrado nas demandas dos moradores, usuários dos Serviços. Há um aumento progressivo das demandas burocráticas e novas atribuições administrativas para a equipe de trabalhadores, o que tem consequências para a forma como o trabalho é desenvolvido. O sistema público, mesmo frágil, fortaleceu a perspectiva do direito e da justiça, e esse sistema registra práticas potentes de desinstitucionalização em todo território brasileiro. Já a gestão contratualizada registra no cotidiano das relações a supremacia do contrato, do financeiro, do lucro, do cumprimento de metas objetivas. Essa gestão não nega o projeto antimanicomial, mas o fragiliza em sua concepção e na forma como ocorre o gerenciamento do trabalho realizado.

 

Quais as principais consequências para o trabalho?

Halina Cavalcanti: Todos os elementos remetem ao mesmo problema: a precarização decorrente do processo de terceirizações e privatizações nas políticas públicas. Questões bastante evidenciadas ao longo da pesquisa foram: alteração no formato de seleção e fragilização no processo de contratação da equipe, fragilidade no processo formativo, distanciamento ou fragmentação do cuidado compartilhado com o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O distanciamento entre os trabalhadores contratados pela instituição e os vinculados diretamente à gestão pública dificulta articulações intersetoriais. Observa-se um isolamento dos trabalhadores contratados, que relatam processos de educação permanente pontuais e voltados estritamente para a execução do trabalho, sem perspectivas ampliadas de cuidado em saúde. Precisamos tratar com seriedade as consequências da utilização de ferramentas administrativas hospitalares e empresariais na gerência dos Serviços Residenciais Terapêuticos, espaços voltados para que seus moradores reconstruam possibilidades de vida não institucionalizadas. Nesses espaços, os crachás, usados em serviços de saúde, tornam-se desnecessários; os adesivos de identificação das instituições filantrópicas nos móveis são dispensáveis; e dificultar a saída de trabalhadores como acompanhantes terapêuticos é contraditório.

 

Quais foram os principais resultados do seu estudo?

Halina Cavalcanti: De forma sintética, ao analisar as repercussões da gestão indireta dos Serviços Residenciais Terapêuticos no Recife (PE), observamos a inserção de uma lógica gerencial e a consequente burocratização do cuidado, associadas a uma precarização do trabalho. Tais elementos se apresentam como dificultadores para a construção de intervenções promotoras de autonomia, e enfraquecem o paradigma da atenção psicossocial. Os resultados encontrados demonstram que a terceirização e a precarização, provocadas pelos novos processos de gestão e contratualização do trabalho, fragilizam a intervenção realizada pelos trabalhadores e o referencial teórico-político assumido em suas práticas. Excessos de normas, de padrões de institucionalização, de controles e de burocracias dificultam a organização de um processo de trabalho centrado nas pessoas e em suas histórias. Também ficou evidente a incapacidade de acompanhamento qualitativo e financeiro dos ‘serviços prestados’ pela empresa conveniada. Destaco aqui a dificuldade de regulação por parte do setor público, que não tem construído mecanismos para acompanhar os processos sob sua responsabilidade. Equipes que antes executavam a política são deslocadas para um acompanhamento regulatório, mas parece não haver formação para essa nova função. Os modelos de acompanhamento e prestação de contas, quanto existem, se resumem aos repasses dos recursos. Pouco observamos sobre mecanismos para verificar a qualidade dos serviços – o olhar do usuário e do controle social está ausente do processo de desenvolvimento da política. Há uma percepção de invisibilidade desses serviços prestados por convênios e contratos, pois o controle social não recebe informações para debater de modo aprofundado e participar dos rumos das decisões. Não podemos abrir mão desse processo de acompanhamento: o Estado deve assegurá-lo de forma democrática e transparente.

 

Halina Cavalcanti Gouveia é autora da dissertação intitulada “Para que amanhã não seja só um ontem com um novo nome: repercussões da privatização da gestão nos Serviços Residenciais Terapêuticos em Recife-PE”, defendida em  30 de novembro de 2022 no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, turma especial Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho – Ceará, sob a orientação de Francini Lube Guizardi.


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