Direito à saúde e vigilância popular são debatidos no último dia do Abrascão

Fiocruz Brasília 25 de novembro de 2022


Nathállia Gameiro e Fernando Pinto

 

Um vírus ou qualquer outro agente infeccioso pode cruzar vários continentes em menos de 24 horas. Buscando estabelecer procedimentos para proteção contra a disseminação internacional de doenças, foi criado o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), instituído em 1951 e revisado pela última vez em 2005. Os desafios enfrentados pelos organismos internacionais e nacionais de saúde pública e as implicações geradas pelo RSI para a prevenção, em escala mundial, de casos de emergências de saúde pública foram abordados por Eduardo Hage, pesquisador da Fiocruz Brasília, no 24 de novembro, durante a programação do Abrascão 2022. 


Ele apresentou a linha do tempo com as principais emergências em saúde pública de 2001 a 2022, incluindo desastres e epidemias, mostrando uma diversidade grande pela característica e impacto na saúde das populações. “Existem riscos previsíveis, de aspectos biológicos, mas também outros eventos podem vir de forma imprevisível, por isso a necessidade de se preparar para eles”, disse. Para Hage, na pandemia de Covid-19 o problema tem sido a falta de aplicação ou aplicação insuficiente do RSI. “Todas a emergências ofereceram um grande número de lições que não foram aprendidas. Iniquidade, fome, degradação ambiental, mudanças climáticas e pobreza não tem sido abordadas ou estão de forma desigual”, completou ao pontuar a necessidade de revisão do Regulamento Sanitário Internacional que, de acordo com ele, trata somente de procedimentos, recomendações e obrigações, e a implementação de estratégias de vigilância integrada em saúde humana, animal e ambiental. 

O pesquisador afirmou ainda que é preciso pensar na representatividade da população desde a construção dos documentos, garantindo a proteção necessária e a possibilidade da sociedade de acompanhar e cobrar a implementação desses mecanismos, até em formas de resgatar os que estão sendo deixados para trás. “Qual direito à saúde queremos? Como garantir que esses novos instrumentos internacionais abarquem os mais vulneráveis? Precisamos trazer os atores certos da sociedade civil para fomentar a discussão da saúde global”, destacou.

 

O debate também contou com convidados internacionais, como a historiadora Anne Emanuelle Birn, professora da Universidade de Toronto (Canadá); Walter Ricciardi, professor da Università Cattolica del Sacro Cuore (Itália) e presidente sênior da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública (WFPHA, na sigla em inglês); e a jornalista e copresidente do Geneva Global Health Hub (G2H2), Nicoletta Dentico. A mesa foi mediada pelo presidente da WFPHA e ex-presidente da Abrasco (2012 a 2015), Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza . 

 

Experiências 

As experiências da Fiocruz da atenção primária à saúde voltadas para a população em situação de rua e no campo da vigilância popular foram apresentadas no último dia do 13º Congresso de Saúde Coletiva. Márcia Muchagata, especialista em políticas públicas e gestão governamental da Fiocruz Brasília e uma das coordenadoras da ComPAPS – Comunidade de Práticas APS e População em Situação de Rua no Contexto da Covid-19, apresentou os resultados do trabalho da ComPAPS, que contou com o envolvimento de técnicos, gestores e pesquisadores das áreas da saúde e da assistência social que atuam com populações em situação de rua.

 

Divididas em 24 Comunidades de Práticas estaduais, esses grupos desenvolveram um repositório online de soluções e práticas na gestão de políticas de apoio à população em situação de rua. Conforme levantamento realizado juntos aos participantes, mais de 75% afirmaram ter adaptado ou modificado suas estratégias ou práticas de trabalho como efeito da Comunidade; e 85% acreditam que seu trabalho está mais articulado após o projeto.

 

Entre os problemas selecionados para discussão nas Comunidades, estão a incompletude do ciclo vacinal, a impossibilidade de acesso às medidas sanitárias protetivas, a ausência de estratégias para atendimento durante a pandemia, a descontinuidade de serviços e a fragilidade da intersetorialidade, entre outras questões que se agravaram diante do aumento das populações em situação de rua. “As comunidades de prática foram criadas em meio à pandemia de Covid-19 para tentar dar respostas rápidas a problemas concretos, em um momento de grande incerteza”, enfatizou Márcia.

 

As experiências e estratégias de Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) nos territórios foram apresentadas na mesma sessão pela representante da Fiocruz Ceará, Michele Meneses que enfatizou o grande interesse dos trabalhadores do SUS em compreender melhor as estratégias de vigilância popular e a participação social, além de contribuir para o conceito ainda em construção da vigilância popular da saúde, ambiente e trabalho. “O projeto envolveu a academia, o SUS e os movimentos populares, promovendo uma participação ativa e demandando dos participantes produtos criativos como resultados das suas experiências prévias. Tudo isso, contribuiu para a elaboração de um conceito de VPSAT e de novas formas de comunicação sobre essa temática”, apontou.

 

Garantia de direitos e o enfrentamento da Covid-19 nas prisões

O impacto da atuação dos movimentos sociais na garantia de direitos e o enfrentamento da Covid-19 nas prisões foi outro estudo apresentado na sessão pela pesquisadora Alexandra Sánchez, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz). O estudo em questão identificou os conflitos em busca de garantias dos direitos, através da análise da atuação dos movimentos sociais em parceria com outros atores e das respostas institucionais frente à Covid-19 nas prisões. Alexandra identificou que as atuações em rede, inclusive em parceria com instituições acadêmicas e órgãos do sistema de justiça indicam que o direito à saúde deve ser garantido a todos, sem reiteração de exclusões. “É possível avançar mesmo em prol de uma população mais vulnerável e ação conjunta coletiva se mostrou muito eficiente”, concluiu.

Legislação e a saúde
“A saúde morreu na fila de espera”, afirmou Ana Paula Nogueira ao apresentar os resultados do seu estudo, que buscou analisar as proposições legislativas sobre fila única de leitos de terapia intensiva no contexto da Covid-19. A pesquisa recolheu dados na base pública de acesso da Câmara dos Deputados e Senado Federal e identificou iniquidade de acesso aos leitos de UTI no Brasil, com mais leitos privados que públicos. Com isso, muitas pessoas deixaram de ser atendidas quando na verdade existiam leitos particulares que podiam ser usados. A pesquisa é assinada também pela coordenadora do Programa de Direito Sanitário da Fiocruz Brasília, Sandra Mara Alves. 

Para as autoras, a atuação do poder legislativo na produção normativa tem impacto direto no funcionamento do sistema de saúde e na qualidade de vida da população. Cabe a ele apresentar projetos de lei voltados a conferir organicidade a uma proposta de fila única de leitos que englobe recursos público e privado em situações de emergência sanitária. Elas concluem que, mesmo após tantas experiências com crises sanitárias de grande magnitude, o legislativo ainda não avançou na produção normativa que solidifique e prepare nosso arcabouço jurídico para enfrentamento de emergências e re-emergências sanitárias futuras. 

 

Democracia é Saúde: Diversidade, Equidade e Justiça Social!*

Entre os dias 19 e 24 de novembro, o 13º Congresso reuniu 6,8 mil pessoas, proporcionando o encontro de ideias e modos de viver no mundo e representando a diversidade de profissões e atividades que a Abrasco congrega: pesquisadores, professores, estudantes de graduação e pós-graduação, gestores, profissionais dos serviços, conselheiros de saúde, representantes de movimentos sociais e membros da comunidade.

Com a presença de autoridades sanitárias de todas as regiões do Brasil e de diversos países, o evento proporcionou uma análise crítica do contexto brasileiro e da importância da defesa do SUS como estratégia basilar para o desenvolvimento social do país, e sua relevância para um país diverso e plural, comprometido com a democracia e com o desenvolvimento sustentável.

Foi um evento de intenso posicionamento ético, político e jurídico, trocas de saberes e partilhas de experiências em torno dos valores defendidos pela comunidade da Saúde Coletiva e pelos diferentes grupos atuantes na luta em defesa do direito à saúde e da equidade.

O Congresso estimulou a reflexão sobre o próprio campo da saúde coletiva, propiciando o diálogo entre áreas, gerações, temas, modelos de produção de conhecimento. Os debates intersetoriais entre saúde e diversos setores políticos foram permeados pelo diálogo e deferência aos saberes tradicionais e acadêmicos, intergeracional e político, evidenciando agendas sociais e ambientais vigentes, com destaque as interseccionalidades entre gênero, sexualidades, raça, classe, etnicidade, deficiências, que produzem e reproduzem as desigualdades sociais e em saúde. Também, foi destacado o papel estratégico da educação popular em saúde no SUS, na construção participativa das políticas e serviços de saúde.

Assim, reafirma-se o tema central do Congresso que é a democracia como bandeira única e inegociável para a garantia da justiça social por via da equidade, da liberdade, da promoção da saúde das pessoas, coletividades e do planeta.

No Congresso, foi lançado ainda o Dossiê Abrasco Pandemia de Covid-19, onde é apresentada uma apreciação técnica e política da evolução da doença no Brasil. O Dossiê denunciou que o país foi um dos mais severamente impactados pela pandemia. A plenária final do Abrascão 2022 marcou a tarde de quarta-feira (24) com os desejos e esperanças construídos pelos congressistas durante os quatro dias de congresso. A atividade final do reuniu os presentes para o balanço do Congresso, que contou com 7191 inscritos, e mais 5.500 trabalhos aprovados. 

 

Confira a íntegra da Carta de Salvador  e a Carta Compromisso da Abrasco contra o racismo, sexismo, patriarcado e todas as formas de discriminação. 


As fotos do evento podem ser conferidas no Flickr da Abrasco e da Fiocruz Brasília.

 

*Com informações da Abrasco

 

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