Reforma Psiquiátrica é também luta pelo respeito às diferenças

Fiocruz Brasília 19 de maio de 2021


Por Fernanda Marques e Nathállia Gameiro

 

Este 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, foi celebrado com a realização online do Seminário Antimanicolonial “Resistência, luta e sonhos: juntos na construção de uma sociedade sem manicômios”, organizado pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Fiocruz Brasília.

 

A palavra ‘antimanicolonial’, usada no título da atividade, busca destacar duas lutas associadas: a luta por uma sociedade de acolhimento e cuidado às pessoas em sofrimento mental, em liberdade, sem manicômios; e a luta decolonial, que busca superar o pensamento eurocêntrico e ‘brancocêntrico’, valorizando conhecimentos de povos ancestrais, muitas vezes, não reconhecidos nos cenários da ciência e da saúde. A desvalorização de corpos e culturas, frequentemente, causa de adoecimento físico e mental, que se aprofunda quando tratamentos biomédicos são impostos ao indivíduo, em desrespeito a sua identidade e tradições. Esses aspectos da decolonialidade, da reconexão com a ancestralidade e da integração entre diferentes narrativas também compõem a luta da Reforma Psiquiátrica.

 

O seminário teve início com as apresentações de Babalorixá Adam de Odé, com cantos para os Orixás, e de Álvaro Tukano, com cantos do povo Yepá Mahsã. “Peço que psicólogos, agentes de saúde, curandeiros, rezadores e rezadoras tenham energia para curar os irmãos que precisam de paz, para tirar deles os sofrimentos”, disse o indígena do Alto Rio Negro. Após as apresentações, a mesa de abertura do seminário foi composta por André Guerrero, coordenador do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Nusmad) da Fiocruz Brasília; Denise Oliveira e Silva, vice-diretora da Fiocruz Brasília; e Kleidson Oliveira, conselheiro de saúde do CAPS de Sobradinho/DF.

 

“Celebramos este dia porque estamos unidos, não estamos sozinhos na luta contra a exclusão e por uma sociedade mais aberta. A luta da Reforma Psiquiátrica, hoje, não é só contra instituições totais, contra o hospital psiquiátrico, mas contra uma sociedade que não respeita a expressão de cada um”, afirmou André Guerrero.

 

Denise Oliveira e Silva lembrou o início de suas pesquisas, na década de 1980, em favelas do Rio de Janeiro, onde mulheres negras associavam sua obesidade ao “nervoso”, o que se relaciona com o racismo estrutural. “A chegada dos europeus, a ocupação das Américas, a destruição de culturas, a escravidão, o sequestro dos negros da África para cá: o processo de adoecimento mental tem a ver com a negação da cultura desses povos; com o pertencimento que foi tirado desses povos; com não poderem vivenciar suas práticas culturais, seus idiomas, seus nomes; com a intolerância religiosa”, disse a vice-diretora, saudando as bênçãos de povos ancestrais que abriram o evento. “O campo da saúde mental precisa incorporar o componente da cultura. A desconexão da sua origem cultural fragiliza e adoece as pessoas. A conexão entre saúde mental e cultura é um bom passo para reintegrar o que nos foi tirado pelo racismo”, indicou.

 

Kleidson Oliveira compartilhou as situações de racismo e abuso que viveu, da infância à vida adulta. “Essas situações me transformaram em um sujeito fragilizado e adoecido. Sentimento de culpa, de inferioridade, o que me trouxe muito problema de saúde mental. Fui parar no vício, embaixo de uma ponte, excluído e, depois, confinado em uma clínica, sofrendo castigos e todo tipo de desumanidade”, contou.

 

Kleidson passou por diferentes tratamentos até que conheceu um serviço do SUS, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em Ribeirão das Neves (MG). “Um lugar humanizado, com profissionais qualificados e preparados para o acolhimento de crises, local ideal para o cuidado, porque não tiram a sua liberdade de ir e vir, nem a sua liberdade como sujeito. Você é ouvido, participa da construção do seu próprio tratamento, recebe apoio para se reinserir na sociedade. Lá eu era tratado com dignidade, chamado pelo meu nome, e não por um apelido que eu tinha por causa de uma deficiência no braço”, descreveu Kleidson, destacando também a importância dos grupos de terapia comunitária, onde as pessoas compartilham seus relatos e se ajudam a superar os problemas. “Não sou ‘pretinho’, aprendi a força do negro como sujeito, e ajudo a cuidar de outras pessoas”, sublinhou.

 

Saberes não colonizados

Após a mesa, foi realizado o Painel “Racionalidades Ancestrais e Saberes Não Colonizados”, com as palestras “O conhecimento científico em movimento: a África em foco”, por Tiago Rodrigues, e “Os povos originários e a epistemologia científica”, por Daiara Tukano. Tiago e Daiara contaram suas experiências de pesquisa e os desafios enfrentados, já que utilizaram em seus estudos referenciais diferentes daqueles que costumam ser aceitos e reproduzidos no meio acadêmico. Eles trouxeram importantes contribuições produzindo conhecimentos sem se encaixarem nos moldes eurocêntricos. “A formação em psicologia é calcada em uma filosofia ocidental e branca”, disse Tiago. “Quando os referenciais são impostos, tem-se uma forma colonizada de produzir conhecimentos. A ciência aprisiona quando ela só enxerga uma forma de produção de saberes”, destacou ele, que, em seu trabalho, utilizou somente autores africanos diaspóricos. “Eu não inventei nada; eu trouxe o que outros cientistas, de outros lugares, já pensaram e produziram. Foi preciso resistência para fazer o mestrado com métodos e estruturas de conhecer diferentes das hegemônicas”, finalizou Tiago, destacando a importância das divindades nesse processo.

 

“Racismo é uma coisa estúpida. Se você assistiu a este seminário e ainda não se convenceu disso, então não entendeu nada”, resumiu Daiara, que, em seu mestrado, usou pensadores indígenas, referências baseadas na oralidade. “Os indígenas têm seus conhecimentos, sua ciência e sua epistemologia, mas até hoje suas contribuições são invisibilizadas. É lastimável que as técnicas e metodologias de pesquisa de outros povos ainda sejam desconsideradas”, ressaltou, lembrando que suicídio, depressão e alcoolismo são problemas graves entre os indígenas. Problemas que estão relacionados à dificuldade de acesso às políticas públicas de saúde, educação e trabalho, e à exclusão pela negação de suas culturas, identidades e territórios – não só o território físico, das aldeias, como também o território do pensamento. “O pensamento científico ocidental instituído afirma que um trabalho só é válido se ele reproduz seus padrões e modelos. E é preciso desconstruir isso”, defendeu Daiara. Para ela, o branco precisa descolonizar, desconstruindo as emboscadas que rejeitam o diferente, enquanto o indígena tem que contra-colonizar, reafirmando suas identidades e saberes. “Uma palavra racista atirada para ferir o outro pode causar adoecimento e matar; da mesma forma, uma palavra de acolhimento pode curar e salvar”, concluiu.

 

A retirada da autonomia dos povos indígenas foi lembrada pela escritora guarani Geni Nuñez durante a roda de conversa intitulada “Povos originários cravam nossos pés aqui: sobre possibilidades de construir esperança, sonho e bem viver”. “Nós indígenas ficamos muito tempo na tutela do Estado, a retirada da autonomia é parte desse processo colonial”, afirmou ao defender a reconexão com a cultura e com o território.

Aspectos que também foram defendidos pelo profissional de saúde e indígena Edinaldo Xukuru. Para ele, a quebra de conexão com os locais de vida, de produção de alimentos e de cura pela natureza traz um adoecimento enorme a essa população. “Os povos indígenas lutam por direito à vida e à saúde. Ao longo de mais de cinco séculos sofremos ataques que levaram à nossa morte e à morte da nossa cultura. Nós profissionais de saúde precisamos descolonizar nossa mente, atos e atitudes, para que nossos modos de promover saúde sejam realmente livres de processos coloniais que ainda se encontram enraizados”, destacou ao falar que existem outros modos de saúde que contemplam a cultura indígena, não apenas o que é ensinado nas universidades, que, segundo ele, muitas vezes, pode ser desrespeitoso e gerar danos à saúde mental.

 

Outra questão apontada por Edinaldo para o adoecimento dessa população é a pressão social dentro das comunidades. Por isso, ele afirmou que não é possível pensar em saúde sem considerar os territórios para identificar os problemas em uma perspectiva ampla, e sem considerar a vida conectada com a espiritualidade, práticas e saberes. “As mudanças significativas só serão possíveis com mudança coletiva. Precisamos lutar juntos por um objetivo, integrar políticas conjuntas para alcançar resultados na saúde e onde as questões foram mais agravadas. Pensar na reconexão para definir estratégias que possam ser mais eficazes, pensar a saúde mental com um novo olhar, com essa perspectiva dos modos de vida de cada um”, completou. 

 

Aquilombar

A palavra aquilombar carrega um grande significado: compreender nossa história, origens e cultura, resgatar as memórias, lembrar o passado e reconectar com a ancestralidade para atuar no presente. Foi assim que Tiago Rodrigues definiu o termo durante a roda de conversa “É tempo de se aquilombar: sobre as necessidades de reconexão com a ancestralidade para construir saúde”. Ele contou a história de sua família na região conhecida como Litoral Negro, localizada no Rio Grande do Sul, que interliga cinco quilombos. 

 

Assim como Tiago, a arte-educadora Laura Maria dos Santos compartilhou sua vivência no Quilombo do Campinho, em Paraty, a primeira comunidade quilombola reconhecida no Estado do Rio de Janeiro. Lá foi onde ela nasceu, mas saiu ainda jovem para a cidade do Rio de Janeiro. No início dos anos 2000, resolveu voltar para suas origens. “Foi como se eu nunca tivesse saído, porque existe uma ancestralidade cuidando de nós; indo para onde for, a gente não se desconecta nunca”, explicou. A comunidade luta para manter sua identidade e tradições. 

 

Tiago e Laura defenderam o quilombo como processo de organização de vida e de identidade cultural, inclusive para a saúde. “O aquilombamento para produção de saúde mental é uma das possibilidades. Não existe saúde mental sem considerar as especificidades, sem considerar pertencimento e sem produzir sentidos”, comentou Tiago. 

 

O Seminário Antimanicolonial “Resistência, luta e sonhos: juntos na construção de uma sociedade sem manicômios” finalizou com apresentações culturais. A gravação do evento estará disponível em breve no canal da Fiocruz Brasília no Youtube