Mulheres que se reconstroem nos encontros

Fiocruz Brasília 5 de outubro de 2021


“Dê Letras à sua Ação” – relato de Rosely Arantes

 

“Falar de autogestão, geração de renda, economia para as mulheres são temáticas que sempre mexem muito com a gente. Principalmente porque a gente se dá conta de que somos as que mais trabalham e as que menos tem acesso à renda, ao trabalho remunerado… somos as mais pobres”. O desabafo de Cristiana Lina, educadora do território de Caruaru, no Agreste pernambucano, aconteceu logo após a primeira aula do Ciclo 2 do Curso Livre de Aperfeiçoamento em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho: com ênfase na saúde integral das mulheres, em 15 de outubro. O curso é uma iniciativa da Fiocruz Brasília em parceria com a Comissão dos Direitos da Mulher e da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados.

 

A aula em formato de live possibilita uma prosa de mulheres, com mulheres e para mulheres trocarem informações sobre as questões que interferem e determinam as vidas das pessoas que, com seu trabalho e cuidado, sustentam grande parcela da sociedade, ainda que sejam invisibilizadas. A formação é também um espaço onde emergem os conflitos, as angústias, mas, acima de tudo, os saberes e as trilhas para a resistência.

 

Seguindo nesse caminho, a solução compartilhada é a de que a resiliência e a sobrevivência só são possíveis em roda e no coletivo. Foi com essas constatações e provocações que dezenas de mulheres trabalhadoras rurais, pescadoras artesanais, marisqueiras, trabalhadoras urbanas e/ou em situação de vulnerabilidade de Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Pernambuco, Rio de Janeiro e Tocantins se reuniram virtualmente, em mais uma etapa formativa.

 

  A engenheira agrônoma, Mestra em Programa de estudos na integração da América Latina e representante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), Miriam Nobre, alertou que precisamos enxergar (e relembrar) a vida como uma grande árvore que possui troncos, folhas, frutos e raízes e perceber que o atual modelo econômico obriga a um esquecimento desse esquema que vai nos desconectando com a natureza, repartindo e precarizando a vida. Para ela, a existência começa nesse ambiente e vai sendo transformada, primeiro pelo trabalho doméstico e do cuidado executado majoritariamente pelas mulheres. Trabalho que aumentou o desgaste e a exaustão para elas durante a pandemia da Covid-19, especialmente porque o trabalho invisibilizado do cuidado com a família e os doentes foi amplificado e persiste a desigualdade na divisão das atividades.

 

A partir dessa reflexão,  Nobre trouxe para a roda a discussão sobre a economia feminista pontuando a necessidade de se enxergar o dinheiro como uma pequena parte e não como a centralidade da economia.  Isso como forma de romper com a crença de que o trabalho feminino não tem valor. Ela alerta para a desigual distribuição dos cuidados, inclusive porque “todas as pessoas precisam de cuidados”, não sendo justo e aceitável que as mulheres sejam responsabilizadas exclusivamente por ele. Daí a necessidade em se pensar estratégias que ajudem o conjunto, a diversidade e a pluralidade desses sujeitos a pensar “como a desigualdade estrutura nossa sociedade e como é possível organizar o cuidado no campo das políticas públicas?”, provoca.

 

Já a mestranda em Políticas Públicas em Saúde e integrante da Coordenação Ampliada do Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (CETRA), Suyane Fernandes, relembra que a luta da Reforma Agrária no Brasil também foi um espaço que incialmente invisibilizou as mulheres, ainda que estivessem presentes e participantes. A insistência pela existência fomentou conquistas, experiências e políticas públicas de economia voltada exclusivamente para elas, como a criação da Secretaria Nacional de Mulheres e do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o acesso aos programas de crédito e as feiras agroecológicas.

 

As feiras agroecológicas têm sido espaços de expressão,  ocupação e destaque para as mulheres. Idem para os quintais produtivos agroecológicos que são fundamentais para o debate com e entre elas. “São espaços de experimentação e troca, produção de segurança alimentar e nutricional, de geração de renda monetária e não monetária, de promoção da saúde e de diversas outras tecnologias como as cisternas da primeira e segunda água”. Eles permitem maturar sobre outras perspectivas a partir do feminismo, refletindo sobre a sobrecarga e a divisão social do trabalho e possibilitando também fazer um convite às mulheres para participarem de espaços políticos (sindicatos, associações, etc.) em diálogo com o conjunto da família para que essa participação não se configure em mais trabalho para as mulheres.

 

A educanda Maria Ilderlândia da Costa Lima, de Russas, região do Baixo Jaguaribe no Ceará, percebeu que a sobrecarga de trabalho não rpermitia que reservasse para ela e a família o cuidado com a alimentação saudável que ela destinava aos clientes. “A gente deve produzir para ter uma renda pra gente, mas também consumir na nossa própria casa”, explica.

 

Outra educadora, Lenilda de Brito, de Caruaru, agreste de Pernambuco, destacou a invisibilidade do trabalho das mulheres, ainda que sejam elas as que mais trabalhem. Também desabafou sobre como é exigente viver num país onde tudo é difícil e demorado quando se tratam de ações para as mulheres. “O comum é que tudo seja sempre executado por mulheres. As nossas vidas estão sempre atreladas a várias situações e interesses que facilitam a vida e o desenvolvimento de todos ao nosso entorno, sendo que sequer somos justamente reconhecidas”, conclui.

 

Curso de Formação

O Curso de Formação de Saúde para as Mulheres se propõe a contribuir na formação de multiplicadoras em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho com ênfase na Saúde Integral das Mulheres por meio de reflexões e práticas participativas no fortalecimento de Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). Durante seis meses, trabalhadoras rurais, pescadoras artesanais, marisqueiras, trabalhadoras urbanas e/ou em situação de vulnerabilidade dos estados de Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Pernambuco, Rio de Janeiro e Tocantins discutirão temas como Saúde e Direitos Humanos para as Mulheres; Autogestão, Geração de renda e Economia para as Mulheres; Promoção e Vigilância da Saúde da Mulher e por fim, desenvolverão um projeto de intervenção nos respectivos territórios. As aulas são virtuais e está previsto um último ciclo presencial, se a situação pandêmica estiver controlada e permitir a segurança sanitária. O curso tem mais de 400 participantes entre educandas, educadoras, coordenadoras e equipe pedagógica formada majoritariamente por mulheres.

 

“Para mudar essa realidade, é não recusar a participar, é intensificar as ações pensadas para nós e executadas por nós. Ser sensível às nossas dificuldades e acolher nossas companheiras, nos cuidando e facilitando a nossa caminhada”. Esse é o recado que a Lenilda de Brito deixa para as participantes e para todas as mulheres que fazem parte dessa formação. Resiliência, resistência, carinho e respeito são as palavras que todas precisamos perseguir. “Lutaremos até que todas sejamos livres!”.

 

Texto e fotos: Rosely Arantes

Jornalista, comunicadora e educadora popular; militante em Direitos Humanos com foco na comunicação, envelhecimento humano e saúde pública; mestranda do Mestrado Profissional em Saúde Pública, com orientação da professora Mariana Olívia Santana dos Santos, da Fiocruz Pernambuco. Coordena a turma de Pernambuco do curso de formação em saúde para mulheres.

 

“Dê Letras à sua Ação” busca divulgar artigos assinados por estudantes de pós-graduação da Fiocruz sobre iniciativas relacionadas a seus trabalhos acadêmicos ou de seus colegas. Os relatos são de responsabilidade de seus autores.