I Encontro Goiano de CAPS ressalta a importância dos trabalhadores da atenção psicossocial  no cuidado com os usuários

Nathállia Gameiro 27 de agosto de 2020


I Encontro Goiano de CAPS destaca, no primeiro dia de evento (27/8), como a pandemia de Covid-19 traz novos desafios aos Centros de Atenção Psicossocial, em um contexto já de desmonte das políticas públicas de saúde intensificado nos últimos anos

 

Nayane Taniguchi

 

27 de agosto. Dia do psicólogo. Na mesma data em que se celebra e valoriza a atuação destes profissionais, a Fiocruz Brasília e a Secretaria de Saúde do Goiás voltam os olhares para o cuidado, a partir da troca de experiências entre as instituições e trabalhadores da saúde na atenção psicossocial. Com a pandemia de Covid-19 que se prolonga no Brasil, os desafios de quem atua no setor são ainda maiores, somados aos já impostos pela desigualdade social característica do país, que impossibilita, a milhões de brasileiros, o acesso a mínimas condições para a sobrevivência.

 

13,5 milhões de pobres, o que equivale à população da Bolívia, ou da Bélgica, Cuba ou Portugal. Dos pobres, 72% são pretos ou pardos; 52% não tem acesso a esgoto; 26% não tem acesso à água e 21% não tem coleta de lixo. 10% das mulheres são empregadas domésticas com vínculos trabalhistas inexistentes, na maioria dos casos. Segundo a médica Rosana Onocko, doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-assessora da Política Nacional de Humanização e da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que proferiu a conferência de abertura do I Encontro Goiano de CAPS nesta quinta-feira (27/8), os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relacionados ao final de 2019. “Esses números devem estar ainda piores,  é nesse cenário que se assenta a pandemia, e o que pedimos é que as pessoas se isolem, usem máscaras, lavem as mãos e mantenham distanciamento social”, disse.

 

Na avaliação dela, o Brasil possui uma desigualdade obscena. “Chamo a atenção a esse pano de fundo brasileiro que é muito marcado pela desigualdade, pela cultura de governo em suas várias instâncias marcada pelo autoritarismo e pela violência policial, além do desmonte das políticas públicas de saúde acentuados desde 2016. Este é um contexto muito adverso para tratar das nossas questões de saúde mental e para lidar com elas em uma pandemia que coloca desafios e necessidades novas”, observou. “No Brasil, há uma conjuntura que antecede a pandemia e nossas políticas públicas precisam ter esse foco muito claro, sem fingir que isso não existe”, acrescentou.

 

A chegada da pandemia desestruturou vários setores. As medidas de isolamento físico produziram o aumento do desemprego e da crise econômica que já vinha se anunciando no país. “A necessidade de evitar o contato físico desorganiza todas as linhas de cuidado, com a suspensão dos serviços que não estavam relacionados diretamente à Covid-19 e de tudo que estava programado, para evitar que as pessoas frequentassem o sistema de saúde”, contou. Para a médica, a resposta foi adequada e compreensível no início da pandemia, mas é necessário pensar em alternativas para a retomada do cuidado e do atendimento na atenção psicossocial para além das “trocas de receitas”.

 

Promover experiências de troca na atenção psicossocial e entre profissionais que atuam nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) é o objetivo do Encontro, em formato virtual, que consolida a parceria entre a Fiocruz Brasília, por meio do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Nusmad), e a Secretaria de Saúde do Goiás, por meio do município de Caldas Novas. “Sabemos que a atenção psicossocial se faz através das relações entre as pessoas que sofrem e a sociedade em uma rede afetiva de acolhimento e interação. O contexto de distanciamento social da pandemia tem impactado diretamente os serviços. Pensar novas estratégias de cuidado e modos de nos manter juntos têm sido uma pauta diária para todos nós, para reinventar o cotidiano e criar meios diferentes de aproximação”, afirmou André Guerrero, coordenador do Nusmad, no início do encontro. “Como fazer os usuários da saúde mental se sentirem vinculados? Como garantir de forma clara que sempre poderão contar com as pessoas que nutrem seus laços sociais? Como fazer isso ainda é um desafio. Seguimos juntos para criarmos novos caminhos”, acrescentou, saudando de forma especial os psicólogos, pelo dia 27 de agosto.

 

Durante a abertura, a diretora da Fiocruz Brasília e também psicóloga, Fabiana Damásio, destacou a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS), no último dia 18, sobre a situação dos países da América, a necessidade de olhar para as questões de saúde mental, e de serem desenvolvidas estratégias e políticas que reforcem as ações. “Superar desafios e qualificar as redes intersetoriais do cuidado precisam ser uma prioridade nesse contexto de pandemia. Os CAPS, foco deste evento, têm papel preponderante nessa rede”, enfatizou. A diretora mencionou ainda ações realizadas pela instituição, como a criação de espaços para ampliar os diálogos para a atenção psicossocial e as redes de cuidado das pessoas que se encontram em sofrimento mental grave e que demandam os serviços de saúde pública. “Cuidar é algo que demanda dedicação de todos nós, em que a escuta e a atenção do sofrimento são centrais”, acrescentou, ressaltando a importância da presença e participação dos trabalhadores nos debates propostos pelo evento para lidar com os desafios recentes. “Que a gente saia desse encontro construindo cada vez mais possibilidades de interlocução e caminhos de fortalecimento do campo da saúde mental e das políticas públicas de saúde”, finalizou.

 

A superintendente de Saúde Mental e Populações Específicas da Secretaria de Saúde do Goiás, Candice Castro, ressaltou a participação de trabalhadores não só do estado de Goiás, mas de todo o Brasil, segundo ela, demonstrando que as ferramentas que possibilitam a realização dos eventos em formato virtual, recurso encontrado para manutenção dessas iniciativas, permanecerão nas rotinas. “A pandemia trouxe desafios em vários âmbitos da saúde, sobretudo na saúde mental. Seremos muito mais demandados daqui para a frente, já estamos sendo em relação ao cuidado. Esse momento de troca de experiências e de conhecimento se faz muito necessário para que nós possamos realmente fortalecer nossa rede de atenção psicossocial”, afirmou.

 

“Sabemos que os nossos profissionais também estão sendo sobrecarregados, colocando muitas vezes de lado os seus sentimentos, emoções e medos para atuar no cuidado, sendo necessário repensar as ferramentas para que a gente enfrente essa pandemia”, acrescentou, considerando, principalmente, a falta de previsão. “Temos que entender que alguns comportamentos e mudanças vieram para ficar. Que possamos fortalecer a nossa rede e os nossos CAPS, objetivo desse encontro. Agradeço a parceria e tenho certeza que ela trará grandes frutos para essa política pública”, disse. Para a superintendente, que representou o secretário de saúde de Goiás Ismael Alexandrino na abertura, não se constrói uma política pública eficaz, e que realmente alcance o usuário, de maneira isolada. “Precisamos estar todos de mãos dadas, unidos, em um único propósito que é trazer cuidado ao usuário do sistema. Que o nosso SUS saia mais fortalecido dessa pandemia e que nós possamos, enquanto servidores, trabalhadores, nos fortalecermos e nos motivarmos. Esse é o caminho que estamos trilhando daqui para frente”, concluiu.

 

Desafios e possibilidades nas Redes de Atenção Psicossocial na pandemia

Durante a conferência de abertura, Rosana Onocko, que é coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental e Coletiva e do grupo de pesquisa Saúde Coletiva e Saúde Mental: Interfaces, também comentou experiências implementadas na atenção psicossocial para evitar que os usuários fiquem desassistidos ou sejam abandonados, dando continuidade “ao compromisso que nos move, que é a melhoria de saúde mental da nossa população”.

 

Entre as reflexões propostas pela médica, ela afirmou ser importante pensar em formas de ajudar a sociedade neste momento. “Quando estou falando de uma epidemia de mortes, de jovens negros, por exemplo, assassinados nas periferias brasileiras, e à qual vem se somar as mortes da Covid-19 que têm endereço – os bairros periféricos têm letalidade muito pior que os bairros ricos de São Paulo, por exemplo –  precisamos pensar como ajudar nossa sociedade a processar toda essa violência e essa dor”, alertou. Para dar conta dos desafios, Onocko avaliou ser necessário buscar articulação da rede com outros setores e movimentos da sociedade, a exemplo da política, da assistência social e da cultura.

 

A conferencista destacou ainda a importância da atuação dos profissionais da atenção psicossocial na busca por alternativas e boas práticas que mantenham a assistência e o cuidado dos usuários. “Não quero fazer um apelo ao heroísmo, não acho uma boa saída. Precisamos de trabalhadores engajados e responsáveis, mas não de heróis. Mas meu apelo é: vamos tentar manter viva a chama, a ideia do que faz sentido em nosso trabalho. Aquilo que mostra a nossa escolha por estar nesse lugar, qual o valor que move minha prática com a qual me identifico, que tipo de cuidado eu escolhi fazer na vida e por que eu vim parar aqui nessa atenção primária, nesse CAPS, nos Núcleos de Atenção da Saúde da Família (NASF). Porque se a gente deixar tudo por conta da burocratização, não vamos conseguir dar um bom cuidado aos nossos usuários”, alertou.

 

Como ações, Rosana sugeriu pensar em formas de manter o funcionamento da rede e buscar adaptações para não deixar os usuários no isolamento, que demanda esforço de criatividade e engajamento das equipes. A médica reconheceu ainda as dificuldades de quem atua com o cuidado: “por um lado precisamos que nossos trabalhadores estejam engajados a não deixar nossos usuários na solidão do isolamento, comprometidos, entendendo o sentido do trabalho; e, por outro lado, nossos trabalhadores também estão sofrendo, como sofre qualquer brasileiro. Eles também têm sido maltratados, recebem poucos salários, também têm dificuldades de acesso aos equipamentos de segurança. Tudo isso têm levado os nossos estabelecimentos de saúde mental a uma certa burocratização”, avaliou.

 

Como iniciativas a serem implementadas, Rosana sugeriu priorizar os cuidados da saúde mental junto da assistência, para que os usuários continuem seus tratamentos. “Direitos humanos têm que ser um dos nortes das nossas práticas na comunidade”, complementou, enfatizando, ainda, a atuação dos agentes comunitários na manutenção do cuidado e vínculo com a atenção primária, e que os trabalhadores busquem atuar de forma simples, próxima e disponível, não invasiva e não violenta, sem estigmas.

 

Para a médica, a busca ativa dos usuários, principalmente crianças e os que apresentam quadros mais graves, é uma alternativa para a continuidade do cuidado, identificando-os, localizando-os e buscando manter contato, ainda que de forma virtual, com troca de mensagens, possibilitando, ainda, o atendimento à distância.  “Se a gente não fizer todas as outras práticas e se restringir à troca de receitas médicas, estamos fazendo uma redução da clínica dessas pessoas, o contrário da ampliação que a gente defende”, avaliou. “Temos observado resultados bonitos, de pessoas que dizem se sentirem reconhecidas e importantes porque o centro de saúde fez contato com elas. As pessoas agradecem quando recebem as ligações e elogiam os trabalhadores quando isso acontece”, observou.

 

Onocko acrescentou: “A gente tem os CAPS porque, para nossos pacientes com transtornos graves e persistentes, é muito difícil viver sem apoio e sem ajuda, e esse apoio está nas atividades que a gente faz no dia a dia. É importante também que os CAPS pensem em como sustentar o tratamento dessas pessoas utilizando estratégias à distância e pensando também nos CAPS infantis. Um ano na vida das crianças é muito tempo”, alertou.

 

Rosana falou ainda da importância de pensar e inventar dispositivos para o processamento do luto, para que as pessoas tenham espaços para falar de todas as dores e perdas, acentuadas na pandemia. “A covid-19 tem trazido, além de um aumento de mortes indesejáveis e evitáveis, a impossibilidade de que as famílias façam rituais de despedida. Sabemos que nós, seres humanos, precisamos de tempo, espaço, companhia e abraço para poder pensar, processar, superar muitas dessas perdas. Temos um trabalho muito importante a ser feito e tenho certeza que será incrementado nos próximos meses”, finalizou.

 

Parte da programação do evento está sendo transmitida no Youtube da Fiocruz Brasília. A programação conta com a realização de mesas, debates e oficinas, e segue até esta sexta-feira (28/8).

Confira na íntegra a abertura e a conferência aqui.