Nathállia Gameiro
Mostra registra vida de usuários egressos de um dos hospitais psiquiátricos de Barbacena, Minas Gerais, em 2007, e as mudanças após a liberdade, em 2018
Acorrentados ou amarrados na cama, submetidos a tratamentos com eletrochoques, banhos frios, máquinas giratórias e sangrias. Tortura e tratamentos desumanos. Este era o cenário dos antigos manicômios no Brasil. A história da psiquiatria no país, dos manicômios à Luta Antimanicomial com a Reforma Psiquiátrica é contada na instalação de fotografias e vídeo Morar em Liberdade: 15 anos do Programa de Volta para Casa. A Fiocruz Brasília recebe a mostra entre os dias 29 de março e 31 de maio, mês da Luta Antimanicomial.
Um dos cenários da exposição é o hospital psiquiátrico Colônia (Barbacena-MG), que retrata os antigos métodos terapêuticos aplicados à época, o impacto das primeiras iniciativas da reforma antimanicomial, e os resultados da implementação do Programa De Volta para Casa (PVC). A instalação é concebida como um jogo de espelhos com imagens de 2007 e 2018 e convida o visitante a refletir sobre a política de saúde mental contemporânea.
“O rastro que a exposição vem deixando é de muita reflexão enquanto uma estratégia de política pública. O PVC tem se mostrado um instrumento potente no processo de ressocialização de pessoas que durante muitos anos perderam a sua identidade. Com o Programa, vemos ao longo da história que essas pessoas têm conseguido resgatar a sua cidadania, o direito à vida, a sorrir, a andar, a brincar e não vivem mais em amarras que o hospital psiquiátrico sempre colocou nessas pessoas”, explica o coordenador do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Fiocruz Brasília, André Guerrero.
A instalação que a Escola Fiocruz de Governo (EFG) abriga é a 7ª edição da mostra, de iniciativa do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas da Fiocruz Brasília em parceria com a TV Pinel. Ela apresenta novos olhares sobre a história cotidiana dos usuários da saúde mental, as pessoas, casas e ruas de Barbacena. A coordenadora de Pesquisa, História e Comunicação Pública e uma das curadoras do projeto, Fernanda Severo, conta que a ideia inicial era reencontrar as mesmas pessoas de 2007 e refazer suas fotografias.
Para isso, a equipe buscou informações sobre os usuários que estavam em liberdade há pouco mais de uma década. “Fomos conduzidos pelos fios de narrativas das vivências do fotógrafo, de uma trabalhadora do município, de um motorista de táxi, dos usuários e dos profissionais que acompanham o cotidiano das casas. O olhar de uns e o olhar novo de outros na mesma direção construíram o caminho, gerando novas camadas do tempo vivido em Barbacena”, conta.
As novas imagens mostram a vida dos egressos do sistema psiquiátrico do município, e revelam o cotidiano e a vida depois da internação, no escopo da pesquisa da Fiocruz Memórias da Saúde Mental e do Programa de Volta para Casa. Os sorrisos largos são marcantes. Pelos registros, é possível ver a mudança na vida dos beneficiários e antigos usuários de residências terapêuticas, com a conquista da liberdade, da cidadania e de pequenas coisas que para eles fazem toda a diferença, como a possibilidade de ter objetos pessoais que não puderam ter por tanto anos.
A historiadora ressalta que o objetivo da nova edição da instalação é evocar memórias da saúde mental e despertar o olhar para o cuidado e convidar o visitante para uma reflexão sobre a importância da garantia dos direitos humanos de todos. Severo acrescenta que a expressividade dos afetos dos reencontros vivenciados com o fotógrafo e com a própria imagem nas fotos da publicação de 2007 que a equipe levou na visita foi marcante. “A cada imagem em que se viam representados, havia uma exclamação que demonstrava a mistura de emoções. O rever a si mesmo e o reconhecimento impresso no livro abriram uma torrente de alegrias”, afirma.
Em 2018, parte da instalação passou por Barbacena, pelo 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão) e no Museu da Vida no Rio de Janeiro e em Brasília, no Congresso da Associação Brasileira de Saúde Mental e na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), no prédio da Procuradoria Geral da República (PGR) e em Barbacena/MG quando foi apresentada aos próprios protagonistas dessa história. Agora, retorna para as duas últimas cidades, com um novo elemento: algumas das imagens que compõem a instalação foram escolhidas pelos próprios usuários do hospital psiquiátrico.
O fotógrafo Radilson Carlos Gomes conta que o retorno a Barbacena foi ainda mais emocionante que o registro inicial: “eu encontrei alegria! Nos primeiros registros eles estavam flagelados e agora as imagens são de cidadania, de luz. Nada melhor do que contar a trajetória usando a ferramenta da luz que é a fotografia”, relata. Para ele, a exposição é uma forma de divulgação de políticas públicas de qualidade, efetividade e de caráter humanitário.
Os pacientes atendidos pelo PVC recebem atualmente auxílio reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social fora da unidade hospitalar. Instituído há dezesseis anos, o programa atende, atualmente, quase 4 mil pessoas. Além do benefício, os assistidos recebem tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do município e compartilham moradias custeadas pelo Estado.
Grande parte das pessoas que eram internadas chegavam ao hospital ainda crianças, vindas de todo o Brasil, em uma locomotiva que ficou conhecida como “Trem de Doido”. E nunca mais se encontraram com as suas famílias ou saíram de lá. Alguns chegaram a ficar 60 anos internados. Essas e outras histórias são contadas na instalação, que ocupa os espaços, corredores e prédios da Fiocruz Brasília.
Primeira edição
A primeira edição surgiu em 2007, por iniciativa da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde e da Política Humaniza SUS, com o objetivo de, através das imagens, materializar e dividir com a sociedade um pouco das experiências vivenciadas no Programa De Volta para Casa. Em sua primeira itinerância foi apresentada em quatro regiões do Brasil no contexto da Política Humaniza SUS.
Barbacena – “Cidade dos loucos”
Barbacena fica localizada na Serra da Mantiqueira, a 169 km da capital mineira. Possui cerca de 124.600 habitantes. Esse município recebeu o nome de “Cidade dos Loucos” durante muitos anos, por abrigar sete hospitais psiquiátricos. No final do século 19, a política de hospitalização, internação e medicalização era forte, e Barbacena se tornou uma “cidade depósito”. Um dos vagões do trem era para os “doidos”, com ponto de parada na Fazenda Caveira, de Joaquim Silvério dos Reis – delator da Inconfidência Mineira. O local ficou fechado por muito tempo, até a abertura do manicômio, em 1894.
A justificativa para a instalação de tantos manicômios em um mesmo território deve-se a uma antiga crença, defendida por alguns médicos do período, de que o clima de montanha era propício para os que carregavam doenças nervosas. Segundo a mesma crença, nesse clima os pacientes ficariam menos arredios e, supostamente, facilitaria o tratamento.
Em 1904, a publicação de um decreto permitiu a internação por cinco figuras: o cônjuge (homem), os antecessores e descendentes, representantes da igreja e delegado. Para lá, eram enviados meninos e meninas de todo o Brasil considerados como desobedientes, pessoas em depressão e todos os outros que a sociedade queria esconder. “As pessoas iam sendo jogadas lá porque saiam do senso comum, eram consideradas pessoas que estavam fora do normal. Chegavam com 10 anos de idade e ficavam por 40, 50 anos internadas. Muitas morriam por lá”, conta Radilson. Estima-se que cerca de 60 mil pessoas morreram nesse hospital, que tinha cerca de 60 óbitos por semana, 700 por ano.