Fala aê, mestre: “Não é necessário ser para respeitar, amar e lutar por esta causa”

Fernando Pinto 12 de fevereiro de 2021


O que é o processo transexualizador? Como a população tem acesso aos serviços?  Quem é uma pessoa trans? Estas e outras questões foram respondidas por Janne Ruth Nunes, egressa do Mestrado em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília. Ela realizou um estudo sobre o lugar da família no processo transexualizador por meio de narrativas de familiares de pessoa trans acerca de suas experiências com essas transformações.

 

A motivação do estudo foi dar espaço e visibilidade, e ouvir a voz dos familiares da pessoa trans, com seus respectivos repertórios de linguagem comunicativa. Foram analisadas duas narrativas de transexuais e 15 de familiares, que compartilharam suas experiências de vida. Confira mais sobre a pesquisa em nossa série de divulgação científica “Fala aê, mestre”!

 

Quem é uma pessoa trans?  

Janne Nunes: É uma pessoa que tem uma identidade de gênero que difere do seu sexo atribuído ao nascer. A pessoa nasceu com um sexo biológico e não se identifica com ele. Uma mulher trans tem o sexo biológico masculino, mas se entende como mulher. Um homem trans tem o sexo biológico feminino, mas se entende como homem.

 

O que é o processo transexualizador e como a população tem acesso aos serviços?  

Janne Nunes: O processo transexualizador é uma política pública. Ele é ofertado pelo SUS desde 2008 para travestis, homens trans e mulheres trans. A política estabelece uma linha de cuidado que se inicia na Atenção Básica e segue na Atenção Especializada, com o intuito de garantir a integralidade. Para ter acesso, a pessoa trans deve procurar uma Unidade Básica de Saúde, que prestará o atendimento inicial e, se necessário, fará o encaminhamento regulado ao Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador. A Atenção Especializada disponibiliza diversos procedimentos ambulatoriais e cirúrgicos, de média e alta complexidade, para o processo transexualizador no SUS, como acompanhamento clínico pré e pós-operatório; tratamentos hormonais e preparatórios para a cirurgia de redesignação sexual; mastectomia simples e plástica mamária; dentre outros. 

 

Quais os requisitos para acesso ao processo transexualizador no SUS?  

Janne Nunes: São necessárias avaliações psicológicas e psiquiátricas durante um período de dois anos, com acompanhamento e diagnóstico final que pode encaminhar ou não para a cirurgia. Para início das terapias hormonais, é preciso ser maior de 18 anos. Para cirurgias de redesignação sexual, com indicação médica, é preciso ser maior de 21 anos.

 

Quais os desafios enfrentados por pessoas trans para acessar o processo transexualizador?  

Janne Nunes: Durante a pesquisa, foram realizadas duas entrevistas em profundidade: uma com Maria Luiza, mulher trans, de 60 anos; e outra com Bernardo Mota, homem trans, de 23 anos. Ambos, apesar de terem vivenciado o processo transexualizador em gerações diferentes, relataram enfrentamentos semelhantes, como o sofrimento dos estigmas e preconceitos, além do afastamento do contexto familiar para alcançar seus novos corpos. Apesar dessas adversidades, eles relataram suas experiências de vida de forma positiva e acreditam nas instituições que acessaram a cada passo do processo transexualizador, com serviços e grupos, como a Universidade de Brasília (UnB) e a rede especializada de saúde transexual do Distrito Federal.

 

Quais os desafios enfrentados pelos familiares das pessoas trans?  

Janne Nunes: A partir das entrevistas com familiares, os principais desafios identificados foram: o reencontrar-se como mãe ou pai, o que acontece em meio à falta de informação; o medo da violência e da discriminação, que independe do nível socioeconômico e se mostrou presente em todos os entrevistados; e a busca de laços de solidariedade, apoio e acolhimento. As entrevistas também revelaram a dificuldade em lidar com a alteração do nome e em desvincular-se das expectativas construídas em relação à vida dos filhos, assim como a necessidade das mães se manterem fortes diante das ausências paternas. Os familiares relataram ainda que, a partir das vivências em grupo, ampliou-se a consciência da necessidade de lutar por justiça social e erradicação das desigualdades sofridas pela população LGBTQIA+, em especial a população trans. A pesquisa será disponibilizada no repositório da ciência aberta (Arca Data) que poderá ser utilizada como fonte para outros estudos, e como referência para elaboração de material para a visibilidade trans (advocacy), por esse motivo as identidades dos participantes foram reveladas.

 

Janne Ruth Nunes Nogueira é autora da dissertação “Histórias do processo transexualizador: o lugar da família e a construção dos novos corpos”, defendida em 16 de dezembro de 2020, com orientação da professora Fernanda Maria Duarte Severo.

 

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