Fala aê, mestre: acesso à informação no HB/DF

Mariella de Oliveira-Costa 11 de agosto de 2023


Uma rede de atenção à saúde desarticulada. Fluxos desordenados. Fragmentação da atenção à saúde.

 

Essas observações fazem parte do que a enfermeira Dayane Adorno Macêdo observou ao conversar com pessoas que usam o sistema de saúde do Distrito Federal. Em sua pesquisa de mestrado profissional, desenvolvida na Escola de Governo Fiocruz-Brasília, a servidora pública da Secretaria de Saúde do DF buscou compreender as barreiras enfrentadas pelas pessoas para acessarem os serviços de saúde. 

 

Para isso, ela entrevistou oito usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) que não possuem plano de saúde e são acometidos por doenças crônicas, das áreas de Cardiologia e Neurocirurgia do Instituto Hospital de Base, localizado na área central da capital e segundo maior hospital em número de leitos da região centro-oeste do Brasil. Considerado uma unidade de referência para todas as regiões de saúde do DF, é referência para a rede SUS não só nas duas áreas onde a pesquisadora coletou seus dados, mas também em politraumatismo, oncologia e hemodinâmica. 

 

Os entrevistados foram questionados sobre como a doença começou, para que a pesquisadora pudesse compreender a experiência e as emoções envolvidas e, conforme contavam suas histórias, ela ampliava os questionamentos para entender como cada pessoa encontrou informações para resolver o problema de saúde e em quais serviços buscou ajuda para este adoecimento e as expectativas de melhoria nos serviços, entre outras questões. A partir das entrevistas, que foram gravadas e transcritas, ela construiu as  trajetórias assistenciais dessas pessoas, buscando identificar nas falas os temas relacionados a acesso ao sistema de saúde e acesso à informação, e também entrelaçar as histórias que eram conectadas, buscando padrões e temas comuns, de maneira a  analisar diferentes olhares sobre o atendimento em saúde. 

 

Durante a pesquisa, Dayane percebeu que há um padrão que impossibilita o acesso desde a atenção primária, bem como a continuidade do cuidado na atenção especializada: a falta de conhecimento impede as pessoas de realizarem escolhas adequadas à sua necessidade de saúde.

 

E para garantir que as pessoas permanecessem anônimas nas falas, a pesquisadora utilizou a criatividade, e substituiu os nomes dos entrevistados por nomes de árvores do Cerrado tombadas pelo Patrimônio Ecológico do Distrito Federal, que passam por alterações bruscas de clima, e crescem em meio à deficiência nutricional dos solos e ocorrência de incêndios – o que determinam suas características, assim como os caminhos diversos traçados pelos usuários do SUS. Saiba mais na entrevista da série Fala aê com a mestre Dayane Adoro Macêdo. 

 

Por que estudar o acesso dos usuários à informação no SUS DF em um mestrado profissional? 

Dayane Adoro Macêdo –  Minha motivação levou em consideração as demandas individuais de grupos da comunidade e famílias que buscam os serviços de saúde. O acesso à informação pode ser um dos principais problemas para a organização de fluxo no sistema de saúde. Então, a partir da minha realidade de vida e profissional resolvi pesquisar a perspectiva dos usuários sobre como o acesso à informação tem sido alcançado.

 

Por que você decidiu trabalhar com a proposta de trajetórias assistenciais?

Dayane Adoro Macêdo – (Re)construir trajetórias assistenciais permite, ao se analisar uma vida ou parte dela, identificar debilidades ou sucessos nos processos de cuidado, fornecendo-se, assim, subsídios para modificar ou fortalecer o funcionamento dos sistemas de saúde. Utilizar a perspectiva do usuário é uma ferramenta valiosa para compreender se a atenção ofertada em determinada região atende às expectativas de quem necessita do cuidado, ou seja, se estas políticas se configuraram efetivamente “como um direito de todos e um dever do Estado”.

 

Das oito pessoas entrevistadas, qual delas mais te marcou? Por que? 

Dayane Adoro Macêdo – A trajetória de Embiruçu evidenciou as dificuldades e barreiras de acesso da usuária aos serviços de saúde revelando que não houve trocas de saberes entre médico e usuário, o que caracteriza uma prática fragmentada, centrada na produção de atos e intervenções de natureza médico-curativa. A usuária não foi vista ou escutada pelos profissionais e acabou naturalizando a “peregrinação” no processo do seu cuidado. A história demonstrou a urgência na superação dessa forma de assistência, com vistas à busca da atenção integral dos usuários, que precisa estar assentada no compromisso ético com a vida, com a promoção e a recuperação da saúde. Isso, contudo, depende de uma mudança do papel do profissional no processo de atenção à saúde dos usuários, com seu deslocamento da posição de “dono do saber”.

 

A partir das oito entrevistas, o que você observou de mais significativo?  

Dayane Adoro Macêdo – Há desarticulação da rede de atenção à saúde, os fluxos são desordenados e a intensa fragmentação da atenção na região, frente às necessidades dos participantes. O caminho percorrido pelos usuários apresentou fragilidades e descontinuidades que prejudicaram o adequado cuidado e a resolubilidade por parte do sistema público de saúde. Identificamos estruturas e serviços na rede que não funcionavam interligados, revelando uma rede de atenção à saúde parcialmente integrada. Em todos os níveis assistenciais sobressaíram as dificuldades de acessibilidade organizacional e da relação de cuidado, evidenciando lapsos e precariedades do processo de regionalização no contexto do Distrito Federal.

 

Qual foi o principal desafio para a execução do seu estudo? 

Dayane Adoro Macêdo – Selecionar usuários e construir uma análise e uma narrativa que permitisse conectar as múltiplas perspectivas, situações e experiências. Durante a realização da pesquisa em campo, também havia a preocupação em não ser referenciada na categoria de profissional da instituição, e muitas vezes, eu era identificada pelos usuários como estagiária, já que estava em condição de acadêmica universitária, de certa forma, isso possibilitou que eu não fosse afastada deles. Progressivamente fui sendo inserida, permitindo que eu participasse das relações e pudesse observar conflitos internos, ouvir confissões e opiniões pessoais envolvendo frustrações, contentamentos, incertezas ou receios desses usuários.

 

Recordo também a dificuldade e da angústia que me consumia e a insegurança em tocar nessas vidas, que muitas vezes, me paralisava no estacionamento do Hospital de Base, e me fazia refletir de que forma eu poderia internalizar que ouvir uma narrativa era dar voz ao usuário e ressignificar sua busca pelos cuidados, dando visibilidade a sua experiência de sofrimento. Os encontros e conversas com os participantes da pesquisa foram transformadores na minha produção de sentidos e significados sobre o meu próprio processo de atuação como servidora pública da saúde. 

 

Por que você quis estudar na Fiocruz Brasília?

Dayane Adoro Macêdo – Minha relação com a Fiocruz se deu a partir do ingresso como aluna externa em disciplinas que abordavam a temática de controle social. A possibilidade de entrada no mestrado poderia fortalecer as ações e reflexões críticas em torno da realidade dos usuários do SUS. Além do mais, a Fiocruz é uma instituição referência em inovação científica e tecnológica.

 

Fazer o mestrado foi importante para a sua vida profissional? 

Dayane Adoro Macêdo – Com as informações construídas na pesquisa observei que parte das dificuldades no cotidiano dessas pessoas está para além da discussão circunscrita à atuação dos profissionais no serviço público, em particular, compõe-se também das (in)compreensões sobre o trabalho educativo e o papel do sistema em disponibilizar informações acessíveis. Um dos maiores aprendizados no processo do mestrado profissional foi (re) aprender a ouvir histórias de vida, não de forma clínica, mas admirando as singularidades na escolha das palavras, no ritmo da fala, nas pausas, nos silêncios, nos risos e nas lágrimas, nos caminhares. Além da oportunidade de ouvir narrativas que desenham trajetórias assistenciais, a combinação das experiências de narrar, caminhar e recontar com a escrita revelou também a potência da construção desta pesquisa através da possibilidade de viver a experiência com o outro e de analisá-la. Assim, penso que uma parcela das dificuldades na assistência hospitalar está associada à invisibilidade social, à marginalidade comunicativa, à subalternidade política e à falta de valorização funcional que têm marcado a história de constituição da carreira e a experiência de servidores públicos da saúde.

 

Como o seu trabalho auxilia o SUS? 

Dayane Adoro Macêdo – Este trabalho pode contribuir para a elaboração de propostas de promoção da saúde, com a qualificação do atendimento na rede de saúde local, a fim de superar a segmentação e desigualdade existente e promover a garantia do Direito à Saúde. Não buscamos generalizações, ao contrário, fizemos emergir questões subjetivas e singulares para se conhecer as experiências humanas e sociais dos sujeitos participantes. Dar visibilidade às trajetórias assistenciais de usuários com doenças crônicas não transmissíveis que moram na Região Integrada de Desenvolvimento do DF e no Distrito Federal buscou descrever e analisar como a rede de atenção local produz respostas aos desafios que enfrenta e quais lacunas necessitam ser superadas. Com isso, pode-se contribuir para a elaboração de propostas de promoção da saúde com foco na problematização e proposição de modelos de atenção para a assistência às condições crônicas, capazes de qualificar o atendimento da rede de saúde local, principalmente no que se refere à efetividade do direito à informação nas redes regionalizadas para operacionalização do SUS.

 

A pesquisa “Somente sei que é um direito: percorrendo caminhos do acesso à informação e à saúde dos usuários do SUS no DF” foi orientada pela professora Francini Lube Guizardi, e apresentada em março de 2022 no Programa de Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Escola de Governo Fiocruz-Brasília.

 

*Fotos reproduzidas do site do IGESDF