Fala aê, mestre: a invisibilidade da saúde da mulher em situação de rua e o acolhimento nas eCR

Fernando Pinto 30 de abril de 2021


As equipes de Consultório na Rua (eCR) tem como objetivo melhorar os atendimentos de Atenção Primária em Saúde voltados às pessoas que se encontram em situação de rua e vulnerabilidade social. Com um veículo adaptado, as equipes prestam assistência itinerante a essas pessoas. As eCR atuam desde a assistência imediata no local até a articulação com outros serviços do território, como hospitais e serviços de assistência social, entre outros. Esse processo de trabalho acontece no espaço da rua, de modo a garantir a quem necessita o acesso aos serviços.

 

Um estudo da percepção de mulheres em situação de rua sobre suas condições de saúde e os cuidados aos quais têm acesso foi realizado pela enfermeira Márcia Leal, egressa do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília. Ela também fez o mapeamento e a análise de políticas públicas específicas para as mulheres.

 

Márcia realizou entrevistas com oito mulheres em situação de rua no Distrito Federal. A partir dos resultados, concluiu que tanto as políticas públicas como o processo de trabalho das eCR precisam ser aprimorados para atender às necessidades de saúde dessas mulheres. A pesquisadora conta mais sobre os achados da pesquisa nesta entrevista da série de divulgação científica “Fala aê, mestre”.

 

Como é estruturada a equipe de profissionais que compõem o Consultório na Rua?

Márcia Leal: A configuração da equipe é de acordo com a necessidade do território. Existem três modalidades de atendimento para se adequar às necessidades de saúde da população em situação de rua. Na modalidade I, a equipe é formada por quatro profissionais, dentre os quais, obrigatoriamente, dois deverão ser enfermeiro, psicólogo, assistente social ou terapeuta ocupacional, e os demais podem ser agente social, técnico ou auxiliar de enfermagem, técnico em saúde bucal, cirurgião dentista, profissional de educação física ou profissional com formação em arte e educação. Na modalidade II, a equipe é formada por seis profissionais, dentre os quais, obrigatoriamente, três deverão ser enfermeiro, psicólogo, assistente social ou terapeuta ocupacional, e os demais conforme as outras áreas já especificadas. A modalidade III é composta pela equipe da modalidade II acrescida de um médico.

 

Quais são os cuidados em saúde prestados à população em situação de rua?  

Márcia Leal: As equipes se responsabilizam pelo cuidado a essa população. Compete a elas realizarem suas atividades de forma itinerante, desenvolvendo ações na rua, na unidade móvel, na Unidade Básica de Saúde (UBS) daquele território ou em outras instalações, sempre de modo articulado com as demais equipes locais de Atenção Primária em Saúde. As eCR, inseridas na Atenção Primária, têm como atributos: ser porta de entrada, propiciar atenção integral e longitudinal, e coordenar o cuidado da população em situação de rua e vulnerabilidade social. Entre esses cuidados, podemos destacar consultas, orientações para educação em saúde, aferição de pressão arterial e curativos, entre outros procedimentos que podem ser realizados pela equipe multiprofissional.  

 

Quais as políticas públicas existentes que acolhem as mulheres em situação de rua?

Márcia Leal: A Política Nacional para a População em Situação de Rua é a política específica para acolher pessoas em situação de vulnerabilidade social. Meu estudo foi baseado nas políticas públicas de saúde, em especial, fazendo o recorte para o público feminino. Nesse sentido, a Política Nacional de Atenção Básica e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher tiveram destaque no acolhimento a essas mulheres. A pesquisa também focou nos serviços prestados pela Secretaria de Políticas para Mulheres até o ano 2018, analisando as informações dos serviços do Ligue 180; a Lei Maria da Penha; o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres; o Programa Mulher: Viver sem Violência; a Ouvidoria da Mulher; e a 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Embora todos esses serviços tenham a possibilidade de acolher as mulheres em situação de rua, em seus registros, destacam-se as mulheres que vivem em ambiente domiciliar, ou seja, as mulheres em situação de rua estão invisibilizadas.

 

Quais são as ações de Atenção Básica para saúde das mulheres em situação de rua?

Márcia Leal: O principal é olhar para essas mulheres de forma integral: identificar suas necessidades de saúde; e realizar ações de promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, cuidados paliativos e vigilância em saúde, evitando, assim, agravos à saúde de mulheres que vivem em condições desafiadoras no contexto da rua. Podemos citar, ainda, que o rastreamento para o câncer de mama e o do colo uterino, consultas de pré-natal, exames e testagens são ofertados na busca de cuidados relevantes à saúde dessas mulheres. 

 

Com o estudo, foi possível identificar as necessidades de saúde das mulheres em situação de rua?

Márcia Leal: Na análise das políticas públicas para o enfrentamento às vulnerabilidades das mulheres, observamos, em seus conteúdos, um olhar voltado, principalmente, para as necessidades das mulheres que vivem em contexto domiciliar. A rua como um fator de vulnerabilidade socioeconômica, exposição à violência e precariedade para as condições de saúde das mulheres que nela vivem é pouco destacada pela políticas públicas existentes. Observou-se que a maioria das políticas específicas para as mulheres indica a violência como um dos principais problemas a serem superados. Nas entrevistas com as mulheres em situação de rua, elas apontaram o acesso aos serviços de saúde para realização de consultas e exames como uma de suas principais necessidades a serem alcançadas.

 

Como sua pesquisa busca contribuir para o acolhimento das mulheres em situação de rua?  

Márcia Leal: A contribuição do estudo é trazer para discussão entre profissionais, gestores e estudantes o quanto essas mulheres precisam ser reconhecidas no contexto da rua e têm direito ao mesmo acesso e garantia à saúde das mulheres que vivem em contexto domiciliar. Quando aprofundamos o olhar para as mulheres em situação de rua dentro dos serviços de Atenção Primária em Saúde, constatamos que as eCR são, de fato, os serviços mais direcionados para essas mulheres. 

 

Quais as barreiras ainda existentes no trabalho das eCR?

Márcia Leal: Após analisarmos os dados registrados pelos profissionais das eCR, podemos perceber que há ainda uma grande lacuna entre o atendimento realizado e o atendimento registrado, ou uma necessidade de ampliar a oferta de serviços para as mulheres em situação de rua. A ausência de informação gera dúvidas se essas mulheres não estão sendo assistidas ou se elas tiveram acesso aos serviços de saúde, mas não foram registradas como situação de rua. Um olhar limitado às questões de saúde mental, álcool e outras drogas, muitas vezes, pode deixar passar despercebidas questões importantes sobre autocuidado, prevenção e rastreamento de doenças, como o câncer do colo uterino e o de mama. O discreto registro de informações sobre o pré-natal e a consulta puerperal é um indício de que é preciso avançar no processo de trabalho dos profissionais no que se refere ao registro das informações do cotidiano das eCR.

 

Márcia Helena Leal é autora da dissertação “Os olhares e a invisibilidade: condições de saúde da mulher em situação de rua”, defendida em 19 de junho de 2020, com orientação da professora Fabiana Damásio, diretora da Fiocruz Brasília.

 

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