“Eu luto”: pesquisadoras negras compartilharam suas trajetórias em encontro promovido pelo Comitê Pró-Equidade da Fiocruz

Fernanda Marques 9 de março de 2021


“Se venci o racismo? Não. Eu luto”. As palavras são da pesquisadora em saúde pública e vice-diretora da Fiocruz Brasília, Denise Oliveira e Silva, que participou nesta terça-feira (9/3) do encontro online Trajetórias Negras na Fiocruz, promovido pelo Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça da Fiocruz. Em sua sexta edição, o encontro – parte da campanha 21 Dias de Ativismo contra o Racismo deste ano – celebrou o Dia Internacional da Mulher.

 

Denise compartilhou sua trajetória desde que chegou à Fiocruz, no Rio de Janeiro, ainda estagiária, em 1984. Foi no Centro de Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) que ela começou a olhar o fenômeno da saúde pública de forma diferenciada, trabalhando nas favelas e constatando a invisibilidade do negro, da fome e da miséria.

 

Aprovada em concurso público da Fiocruz, em 1986, a nutricionista seguiu engajada em dar visibilidade a essas questões, apesar das dificuldades impostas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. “A instituição faz parte do país, ela carrega o racismo institucional. Ouvi que meu trabalho com favelados, negros e fome não era pesquisa, era projeto social. Ouvi que não havia racismo no Brasil e me recomendaram fazer terapia”, lembrou. “Mas a Fiocruz teve a coragem de assumir o problema e trazer uma série de estratégias para superar esse racismo estrutural e histórico que está instalado na nossa sociedade, e por isso sou grata de estar aqui, me coloco grata à ancestralidade pelos processos que já vivi e ainda vivo”, acrescentou.

 

Denise lembrou o amigo e pesquisador Sebastião Oliveira (1918-2005), que mantinha um grupo com reuniões semanais em que se discutia o que era ser negro na Fiocruz. “Trago comigo, na minha trajetória, uma série de ensinamentos dele. A presença negra na ciência era quase inexistente e ele nos falava da importância de abrirmos espaço para outros negros”, contou. “Antes, eu me via muito sozinha como negra na Fiocruz; hoje, não me sinto assim. Sou feliz porque vejo muito mais mulheres negras nesta instituição.” Para Denise, os movimentos sociais estão muito mais avançados em relação a um conhecimento emancipatório, que ainda é uma reflexão recente nas universidades e encontra como obstáculo “uma ciência eurocêntrica, branca e de elite”.

 

Já em Brasília, Denise trabalhou na área da política pública para a saúde da população negra. “Não só como pesquisadora, mas como mulher negra brasileira, foi um dos momentos mais importantes para mim. Porque o racismo é muito criativo. Você estabelece estratégias para superá-lo, mas ele se manifesta em outras vertentes, por vezes sutis. A luta contra o racismo é uma luta da nação; nossas elites, desde a República, ainda não entenderam que o país ainda não aboliu, de fato, a escravidão”, ressaltou. “A pobreza no Brasil tem cor, como consequência do racismo estrutural. Mas resolver só a pobreza não resolve o racismo. É uma fantasia que somos uma democracia racial”, disse, recomendando uma disciplina sobre Racismo e Saúde não só aos alunos de pós-graduação, mas aos docentes também.

 

Outra convidada do evento foi a pesquisadora Roberta Gondim, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (DAPS/ENSP). Paraense, nascida e criada na Amazônia, bisneta de africana escravizada, conheceu de perto, desde muito cedo, “as contradições entre vidas potentes e vulnerabilizadas, marcadas pelas desigualdades que fundam nosso país”. Chegou ao Rio com 28 anos e trabalhou em uma colônia de pessoas com hanseníase, em sua maioria pobres, de origem indígena ou negra, em situação de asilamento e exclusão. “As experiências me impulsionaram para a busca de respostas diante das desigualdades e para uma leitura mais apurada das práticas cotidianas de saúde. Na minha formação como sujeito, na forma como leio a realidade, eu sou uma pessoa do SUS”, afirmou.

 

Segundo Roberta, no ambiente acadêmico, se o pesquisador não fizer nada de diferente, e apenas se comportar “normalmente”, então, sim, ele está sendo racista. “Porque o ambiente acadêmico é racista e, para operar uma transformação, é preciso ser antirracista”, defendeu. Ainda de acordo com a convidada, é preciso uma discussão adensada sobre ética na pesquisa, para que vidas negras não sejam mais tratadas como objetos nem como generalizações, e sim como sujeitos.

 

Os alunos não podem ser cerceados nos seus temas de pesquisa. “Os jovens nos trazem questões sociais legítimas que precisam ser vocalizadas por eles com seus corpos negros. Precisamos mobilizar recursos acadêmicos para esse ‘novo’ que está chegando e evocando outras epistemes, outras realidades. Não podemos frear esse processo”, destacou. “Não é à toa que essas questões estão sendo trazidas. Houve uma política que propiciou a chegada desses sujeitos, antes apartados da vida acadêmica. E temos o privilégio, como professores, de conduzir esse processo de uma ciência emancipatória, transformadora, que não pode ser enunciada a partir de uma única raça, uma única classe, um único gênero”, concluiu, convidando todos a conhecerem o Coletivo Negro da Fiocruz.

 

O debate foi conduzido pela assistente social Roseli Rocha, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e da coordenação colegiada do Comitê Pró-Equidade. No início da atividade, a jornalista Marina Maria, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz) e também da coordenação colegiada do Comitê, leu a Carta Manifesto do Coletivo de Mulheres da Fiocruz.

 

 

Assista à íntegra do debate no canal da VideoSaúde no YouTube