Ensaio analisa hospitalidade e consumo de cervejas

Fernanda Marques 25 de novembro de 2022


“Se você vai fechar um negócio importante, você não chama seus parceiros para uma volta de carro”. A provocação foi feita por Robert Kenzo Falck, professor do curso de Gastronomia do Centro Universitário Estácio de São Paulo e doutorando em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi. “Muito provavelmente, a parceria será celebrada em torno de uma mesa, com comida e, sobretudo, bebida”, completou o professor. No dia 21 de novembro, ele fez uma palestra online sobre o ensaio Características de hospitalidade e comensalidade no consumo coletivo de cervejas: cerveja tradicional africana e cauim, publicado na última edição da Revista de Alimentação e Cultura das Américas (RACA). Assinado por Robert e por Elizabeth Kyoko Wada, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Hospitalidade e do Mestrado Profissional em Gestão de Alimentos e Bebidas da Universidade Anhembi Morumbi, o ensaio aborda os significados sociais e culturais do beber junto, analisando, em especial, algumas bebidas tradicionais africanas e sul-americanas. 

 

“As bebidas podem ser partilhadas genuinamente, pois, quando várias pessoas bebem do mesmo recipiente, estão consumindo o mesmo líquido, diferentemente de quando dividem um alimento, com partes mais desejáveis que outras; desta maneira, a divisão de bebidas torna-se um símbolo universal de hospitalidade e amizade”, explica o artigo. De acordo com os autores, se a hospitalidade é a relação entre um anfitrião e um hóspede, a partir de um conjunto de regras, ritos e leis, a comensalidade pode ser compreendida como a materialização da hospitalidade, com a oferta de comidas e bebidas, igualmente seguindo regras, ritos e leis. “O consumo ao qual a sociedade pós-moderna está habituado tem suas raízes na simbologia criada pelo copo compartilhado, o momento entre amigos e familiares, a pausa das atribuições diárias, dado que o compartilhamento de alimentos e bebidas pela comensalidade constrói e fortalece os laços humanos”, diz o artigo. 

 

Os autores fazem um mergulho nessas raízes e lembram que, em alguns dos primeiros registros humanos de desenhos, na Mesopotâmia de 4.000 a.C., é possível observar pessoas tomando cerveja a partir de um mesmo grande recipiente e usando longos canudos, provavelmente de junco. Existem, porém, indícios de consumo de cerveja ainda mais antigos, entre 15.000 a.C. e 4.000 a.C. “O costume de ingestão por longos canudos permanece até hoje em alguns povos africanos, como os Nandi quenianos. Uma cerveja é elaborada com painço ou sorgo, espécies de grãos, e depois é ingerida por longos canudos”, contam Robert e Elizabeth no ensaio. Para os pesquisadores, o costume perpetuado na história africana de consumo de cerveja tem um papel na construção de relações dentro das famílias e entre elas.

 

O ensaio aborda, ainda, bebidas fermentadas presentes há séculos nas culturas ameríndias, como o cauim, conhecido como ‘cerveja da terra’, cujo preparo envolve uma complexidade de etapas e instrumentos. O consumo do cauim, além de facilitar a socialização, é apontado como um elo entre o mundo terrestre e o sobrenatural, ou seja, a bebida aparece como um elemento de conexão entre os seres humanos e entre estes e o plano espiritual. “O uso extenso de produtos da floresta (alguns autores consideram até 140 variedades de cauim de frutas no Brasil) e as diversas técnicas empregadas no preparo ilustram a profunda conexão dos povos locais com a natureza”, sublinha o artigo.

 

Em sua palestra, Robert destacou a importância do contexto – espaço e tempo – para a compreensão das dinâmicas sociais e culturais. Utilizando a hospitalidade como um paradigma, sublinhou também como as heranças do beber junto desde tempos imemoriais chegam até os dias atuais. Conforme o ensaio, “todas essas influências, facilmente observáveis nas relações contemporâneas, podem transportar-se automaticamente ao simbolismo das bebidas arcaicas, ilustrando como as relações humanas, desde o surgimento da vida social, baseiam-se nos preceitos básicos da hospitalidade: dar, receber e retribuir”.

 

Publicação do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (PALIN) da Fiocruz Brasília, a RACA tem realizado seminários virtuais para promover a aproximação e o diálogo entre autores e leitores da revista. O próximo encontro está marcado para 5 de dezembro, às 16h, e contará com as participações de Joíse Maria Rêgo Santos, da Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, uma das autoras do artigo É quizila do santo: vivências e interdições alimentares em um candomblé angola, e Denize de Almeida Ribeiro, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, autora do artigo Adorcismo, Nutrição e Saúde nos Candomblés da Bahia. O seminário ocorre na plataforma Zoom. Para participar, basta fazer sua inscrição no Campus Virtual Fiocruz.

 

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