Em tempos de crise, é necessário fortalecer o intercâmbio entre diferentes saberes, defendem profissionais da saúde e agricultura

Fernanda Marques 31 de março de 2021



 As políticas de mitigação fracassaram. Ultrapassamos limites que regulam a estabilidade do planeta e a crise ambiental a que chegamos é tamanha que somente mudanças estruturais profundas podem garantir nossa sobrevivência. A reflexão foi trazida pelo sociólogo Manuel Baquedano, fundador e presidente do Instituto de Ecologia Política, no Chile. Ele participou da aula inaugural do Curso de Especialização e Livre em Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no Distrito Federal, realizada online nesta segunda-feira (29/3). “Em tempos de crises” foi o tema do evento, transmitido pelo canal da Fiocruz Brasília no YouTube.

 

Ao discutir “A crise civilizatória, a mãe de todas as crises”, Baquedano enumerou suas fases (crise financeira, da globalização, da governança, ecossocial e dos valores), comentou a emergência da inércia climática (em que medidas de curto e médio prazo já não são capazes de surtir efeitos sobre a crise climática) e destacou o caminho da esperança ativa, uma esperança combinada com o ativismo compromissado com a saúde da Terra. Segundo o palestrante, “a pandemia atual é o resultado da destruição de selvas e bosques” e somente caminhos alternativos poderiam dar respostas à crise que estamos vivendo. “Seguir pela via da simplicidade, decrescer eliminando o supérfluo e fomentar a resiliência ecossocial”, disse Baquedano, apontando o Curso de Especialização e Livre como um passo nesse caminho de construção coletiva de soluções alternativas.

 

A potência do Curso também foi destacada pela deputada federal Erika Kokay. “Estamos falando de agroecologia no país do agrotóxico”, lembrou. “Saúde é qualidade de vida, e qualidade de vida é felicidade. E isso acontece quando estamos numa trama afetiva que trança saberes”, disse. De acordo com Kokay, o negacionismo não recusa apenas as evidências científicas; recusa também as próprias realidades, impondo uma narrativa verticalizada, não democrática. “Negar as realidades é uma forma de controle para anular o outro, e não há cuidado sem liberdade”, advertiu a deputada em sua palestra intitulada “Educação e Formação em Saúde no Contexto de Crises”.

 

As palestras de Baquedano e Kokay foram antecedidas por uma mesa de abertura que contou com representantes das instituições que coordenam o Curso e seus diversos parceiros. “Este curso tem como objetivo disseminar as sementes da construção coletiva, da equidade, do combate às desigualdades, do cuidado mútuo e do cuidado com a terra, para o fortalecimento do SUS”, afirmou a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio. Para o coordenador de Atenção Primária à Saúde da SES/DF, Fernando Erick Damasceno, é preciso superar o olhar que enxerga a saúde e a agricultura em recortes separados. “Que este Curso floresça não só em técnicas, mas também virtudes, como a solidariedade”, desejou. O pró-reitor de Extensão e Cultura da Unicamp, Fernando Hashimoto, lembrou o compromisso da universidade pública com a responsabilidade e a transformação social, e com a promoção e a defesa de direitos. “Este Curso nos mostra o valor de pensar a ciência de maneira mais ampla, o valor do diálogo entre a academia e os saberes ancestrais”, sublinhou.

 

O objetivo do Curso é capacitar os profissionais nos fundamentos da agricultura biodinâmica para a produção de plantas medicinais em agrofloresta. Ele é voltado a trabalhadores da saúde, agricultores familiares e representantes da sociedade civil. A maioria dos inscritos é do Distrito Federal, mas há também participantes de outros estados brasileiros. Para os que têm graduação, o Curso se apresenta como Especialização. Para os que não têm, como Curso Livre. O coordenador da iniciativa, o pesquisador André Fenner, do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT) da Fiocruz Brasília, destacou as bases pedagógicas do trabalho, como a pedagogia da autonomia, da alternância e do oprimido. Falou também dos tempos educativos, como os de concentração e dispersão.

 

A agricultora, médica veterinária e mestre em gestão ambiental Ximena Moreno comentou a proposta de que os participantes do Curso desenvolvam projetos de intervenção em unidades de saúde, e descreveu o exemplo da agrofloresta medicinal biodinâmica da UBS1 do Lago Norte, que teve início em 2018, com o envolvimento da comunidade. “Isso representa uma transição do cuidado, que passa a ser centrado na coletividade em seu território. E revoluciona a experiência dos usuários do SUS, que participam do cultivo de produtos que serão usados nas unidades de saúde”, explicou.

 

Com mediação do médico de família e comunidade Marcos Antonio Trajano Ferreira, o evento contou ainda com breves intervenções dos vários parceiros do Curso. Estiveram presentes:

• Luciano Mendes, secretário executivo de Agricultura (Seagri/DF), que destacou o tanto que temos a aprender com os agricultores familiares e o cultivo de plantas medicinais como oportunidade de negócio para esses trabalhadores;

• Nelson Filice de Barros, coordenador do Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde da Unicamp, que ressaltou o potencial do Curso de trazer mudanças para dentro do SUS e da sociedade brasileira;

• Cristian da Cruz Silva, gerente de Práticas Integrativas em Saúde da SES/DF, que comentou o papel desta primeira turma de instigar a formação de novas turmas;

• Helena Maltez, representante da ONG Mutirão Agroflorestal, que lembrou que o potencial terapêutico das plantas também depende de solo, água e trabalho saudáveis;

• Paulo Tavares, diretor da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, que comentou a importância de abrir espaço para saberes que, aparentemente, destoam dos oficializados;

• Fernando Silveira Franco, representante da Associação Brasileira de Agroecologia, que saudou a aproximação entre agricultura, medicina e pedagogia;

• Marcos Freira Júnior, gerente do Centro de Referência em Práticas Integrativas em Saúde da SES/DF, que falou da fértil união entre ciência e cultura popular;

• Islândia Carvalho, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e coordenadora do Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS), que lembrou os desafios de pensar e fazer diferente, abrindo novos caminhos para a saúde e acolhendo os saberes ancestrais e a diversidade no SUS;

• Jefferson Pereira, pesquisador de Farmanguinhos/Fiocruz e coordenador das RedesFito, para quem o potencial das plantas medicinais não se limita aos usos terapêuticos, mas abrange, sobretudo, o respeito ao conhecimento tradicional e a sinergia entre os diferentes saberes, sublinhando, ainda, a importância dos contextos – uma planta medicinal em monocultura com uso de agrotóxico seria altamente prejudicial à saúde;

• André Burigo, representante da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), que definiu a aproximação entre saúde e agroecologia como uma ferramenta de transformação social;

• Marcos Bosquiero, representante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, que provocou os colegas médicos a levarem os aprendizados do Curso para dentro das unidades de saúde, construindo um saber médico junto com o saber popular;

• Vicente Almeida, representante da Rede Irerê de Proteção à Ciência, que relembrou um episódio da história da Fiocruz conhecido como Massacre de Manguinhos e defendeu a democratização do acesso à ciência e a conhecimentos inovadores;

• Rogério Vianna, coordenador do Programa de Agricultura Urbana da Emater/DF.