Reconstruir: curso de saúde mental começou

Fernanda Marques 14 de junho de 2022


Todo desastre ou emergência em saúde pública tem um momento agudo, mas seus efeitos se prolongam. Os desastres e emergências não se limitam ao curto prazo, porque, após as respostas à fase aparentemente mais crítica, é preciso recuperar as condições de vida, fazer a reconstrução social e investir na prevenção, de modo a mitigar novas crises – que têm a ver com os nossos modos de estar no mundo. Com esse olhar do longo prazo e da transformação, mais de 700 pessoas acompanharam nesta segunda-feira (13/6) a aula inaugural on-line da 2ª edição do Curso Nacional de Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Covid-19: reconstrução pós-desastres e emergências em saúde pública. Dirigido a gestores, trabalhadores e estudantes da saúde e das áreas relacionadas ao tema das emergências e desastres, o curso teve início ontem (13/6) e será realizado até 14 de setembro, na modalidade a distância. Ele já tem mais de 8 mil inscritos e teve inscrições prorrogadas até 14 de agosto.

 

Transmitida pelo canal da Fiocruz Brasília do YouTube, a aula teve como tema “Reconstruir para que, para quem, para onde?” e contou com a participação de vários docentes do Curso. “Para trilhar os caminhos da reconstrução, vamos seguir criando espaços dialógicos, identificando os principais problemas da população e construindo respostas em conjunto. Precisamos fortalecer nossa rede de solidariedade, com fios de realidade e esperança, para tecer o futuro de uma vida mais digna, justa e menos desigual para todos”, afirmou a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio.

 

A coordenadora pedagógica do Curso, Ana Cecília Weintraub, explicou que ele será dividido em seis módulos, que abordarão temas como o Sistema Único de Saúde (SUS) e a gestão de riscos e desastres; diagnóstico da Rede de Atenção Psicossocial; risco em saúde mental; dispositivos de cuidado; áreas relacionadas, como educação, habitação, meio ambiente, trabalho e renda; e a carga de trabalho e exaustão dos trabalhadores que lidam diretamente com os efeitos das emergências e desastres. No Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), os profissionais encontrarão cartilhas e outros recursos educacionais variados, bem como poderão participar de fóruns de discussão. Entre as pautas que serão debatidas, estão estratégias de reinvenção do cuidado desenvolvidas por equipes de saúde diante das necessidades trazidas pela pandemia. “A Covid-19 causou e segue causando muitos sofrimentos. Mas nem todo mundo que tem um sofrimento vai desenvolver um problema que necessite de intervenção. Como identificar sinais que indicam um problema de saúde e requerem intervenções mais técnicas estão entre os assuntos que serão abordados no Curso”, adiantou a coordenadora.

 

Cada módulo contará, ainda, com uma live no YouTube. A primeira já será realizada amanhã, quarta-feira (15/6). Com o tema “O momento atual da sindemia”, ela terá como convidado José Agenor Álvares da Silva, assessor sênior da Fiocruz Brasília e ex-ministro da Saúde. Clique aqui para assistir

 

A respeito da sindemia, na aula inaugural, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes), Carlos Machado de Freitas, lembrou que a Covid-19 não acontece de forma isolada, mas conectada com outras doenças e desastres de forma simultânea ou seguida, e que é preciso olhar para o substrato social em que todos esses agravos ocorrem, atingindo de forma mais severa as populações vulnerabilizadas. “Hoje temos mais famílias nas ruas, mais pessoas com fome, e isso também é consequência da pandemia. Só que a Covid-19 não será nossa última emergência, e ela tampouco aconteceu sozinha: tivemos, por exemplo, as enchentes recentes na Bahia, em Petrópolis, no Recife. Emergências e desastres fazem parte das nossas vidas, mas com efeitos mais graves para uns do que para outros”, afirmou. Para Carlos, mais do que conteúdos e técnicas, o Curso, em sua segunda edição, busca a consolidação de uma rede de trabalho e solidariedade, com base nos princípios do SUS. “Quando falamos em reconstrução pós-desastres e emergências, é reconstruir para todos, com mais rapidez e mais investimentos, sobretudo, para quem mais precisa – não há saúde mental sem um teto e sem comida! E a reconstrução deve propiciar condições melhores e mais seguras do que as anteriores. Mais do que o vírus ou a chuva, é preciso prestar atenção nas fragilidades sociais que já se encontram nos territórios, e fortalecer as políticas públicas”, recomendou.

 

É preciso reconstruir sobre bases seguras, conforme também destacou a psicóloga Débora Noal. “Não há saúde mental se não houver direitos, conexão com os territórios e justiça socioambiental”, sublinhou. Uma das coordenadoras do Núcleo de Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres e Emergências em Saúde Pública (Nusmaps) da Fiocruz Brasília, Débora frisou que cuidado é muito diferente de patologizar todos os sofrimentos e que é impossível pensar a saúde mental isolada dos contextos – ainda mais no Brasil, um país tão diverso e com formas tão distintas de ler a realidade. “A estratégia de saúde mental tem que ser construída a partir do que o usuário traz e mostra que precisa, não a partir da imposição do que o profissional aprendeu na universidade”, orientou. A docente disse ainda que, embora não seja fácil, existe muita gente disposta a construir esse cuidado diferenciado – e lembrou da 1ª edição do Curso, bem no início da pandemia da Covid-19, com mais de 69 mil inscritos. “Mesmo em um momento de muito sofrimento, conseguimos configurar uma rede de cooperação e construção de conhecimentos a partir das necessidades da população e dos trabalhadores, falando de um jeito que as pessoas escutassem”, afirmou.

 

O foco nos trabalhadores é fundamental, pois são eles que lidam diretamente com as evidências dos territórios. E essas evidências mostram que de 20 a 30% da população adulta apresentam demandas de saúde mental no cotidiano da Atenção Básica. “É preciso, então, preparar os trabalhadores da Atenção Básica para que eles possam cumprir esse papel de identificar riscos e evitar eventos mais graves”, argumentou o professor Hêider Aurélio Pinto, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Também integrante da equipe docente do Curso, ele destacou a necessidade de se superar o modelo de assistência focado na leitura biomédica da doença, que ignora a pessoa, suas subjetividades e relações sociais. “Esse é um debate sobre mudança do modelo de atenção, para que tenhamos uma prática clínica centrada no sujeito. A pandemia trouxe muitas perdas – mortes, desemprego, diminuição da renda, alterações do estilo de vida, aumento da violência. O sofrimento mental está muito forte e qualquer projeto de cuidado precisa levar isso em conta: acolher o usuário, em vez de enquadrá-lo; enxergar a pessoa de maneira integral; coordenar o cuidado no território, articular os serviços e qualificá-los”, disse. “Quem fizer o Curso não vai se sentir sozinho, porque os problemas são parecidos e compartilhamos a vontade de qualificar o cuidado e fortalecer a Rede, caminhando juntos e com a sensibilidade apurada”, completou.

 

Infelizmente, devido a problemas técnicos de conexão, o líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor Ailton Krenak, que participaria da aula inaugural, não esteve presente nesta ocasião.

 

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