Covid-19: “uma alegoria da perversa desigualdade social no Brasil”

Mariella de Oliveira-Costa 15 de maio de 2020


Fernanda Marques

 

“O novo coronavírus é uma alegoria da perversa desigualdade social no Brasil”. Com esta frase, a coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin/Fiocruz Brasília) e do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA), Denise Oliveira e Silva, sintetizou o debate realizado nesta quinta-feira (14/5) no Conexão Fiocruz Brasília, já disponível no YouTube. Durante o programa, que abordou o tema “Alimentação em tempos de pandemia”, diferentes especialistas argumentaram que, mesmo antes da crise deflagrada pela covid-19, o país já enfrentava problemas estruturais graves relacionados à insegurança alimentar, como desconstrução de políticas públicas, redução de gastos sociais e desemprego, com aumento da desnutrição infantil e outros retrocessos significativos, afetando, sobretudo, as populações mais vulneráveis.

 

“Entramos na pandemia já com um déficit grande e as consequências são seríssimas”, sublinhou o professor Flávio Valente, pesquisador associado ao Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-secretário geral da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (FIAN Internacional). Contudo, segundo Valente, é possível reverter essa situação, desde que não se continue caminhando na direção oposta ao fortalecimento das políticas públicas de saúde e que haja mobilização social. Para Denise, um lado positivo do isolamento social foi, justamente, mostrar como a rede de segurança alimentar está enfraquecida e é urgente fomentá-la.

 

Há quem fale sobre o risco de sobrepeso e obesidade durante a pandemia, porque as pessoas, em isolamento, tenderiam a comer mais e ingerir alimentos mais calóricos. É preciso, porém, diferenciar os aspectos epidemiológicos de outros tipos de discurso, como questões puramente relacionadas à estética do corpo, que perpassam as classes médias e altas. “No contexto da pandemia, o grande risco é a fome e ela é uma realidade para muitas pessoas em situação de vulnerabilidade”, destacou Denise. Ela explicou ainda que, independentemente da covid-19, o sobrepeso e a obesidade já vinham crescendo no país, atingindo mais de 50% dos brasileiros adultos, sobretudo entre a população urbana de baixa renda, sem acesso às escolhas alimentares mais adequadas. Ao considerar que o excesso de peso pode estar relacionado à hipertensão e diabetes, e que estas comorbidades aumentam o risco de complicações pela covid-19, então, mais uma vez, são as populações em situação de vulnerabilidade que sofrem o maior impacto da pandemia.

 

Muito além do biológico

Ao longo do século 20, o avanço da sociedade industrial introduziu grandes mudanças no modo de vida: transformações no mercado de trabalho, com maior incorporação das mulheres e longas jornadas; menos tempo de ficar em casa e cozinhar; simplificação dos processos domésticos e culinários; crianças fazendo refeições na escola; maior frequência de refeições rápidas e feitas na rua. É com essa carga histórica que se chega ao momento da pandemia, com muitos trabalhadores em home office pedindo refeições de baixo valor nutricional por aplicativos de celular e consumindo alimentos ‘práticos’, processados ou ultra-processados, na frente do computador.

 

“Comer não é só a ingestão do alimento. Comer é um momento de pausa, de reflexão, e essa dimensão está se perdendo pelas condições de trabalho, muitas vezes, extenuantes. Até a ingestão de água tem sido negligenciada”, avaliou a nutricionista e especialista em saúde do trabalhador Wanessa Natividade Marinho, da Coordenação Geral de Gestão de Pessoas (Cogepe/Fiocruz). “Na sociedade industrial, o alimento tornou-se um produto de consumo. Perderam-se outras dimensões, como a relação do comer com a sociedade, o meio ambiente e a cultura. O comer político precisa ser resgatado. A covid-19 nos força a pensar sobre isso. Ela descortina uma crise que vai além do vírus”, completou Denise, comentando também sobre o papel central das mulheres no gerenciamento do comer, muitas vezes até de modo perverso, devido à sobrecarga de trabalho e, em certos casos, perpassando questões de violência doméstica.

 

Segurança alimentar, segundo Wanessa, requer políticas assertivas desde o momento do plantio, valorizando-se a agricultura familiar, até a oferta e o consumo dos alimentos. “Para uma estratégia de distribuição de cestas básicas que contemplem alimentos in natura e minimamente processados, seria fundamental uma articulação com o pequeno produtor”, sugeriu. “Infelizmente, a nossa realidade tem sido pautada pelo agronegócio e pela falta de investimento na agricultura familiar”, lamentou o educador social e escritor Everardo de Aguiar Lopes. “A crise é tão profunda que nem estamos discutindo a segurança alimentar plena. Estamos tratando de matar a fome das pessoas. O coronavírus veio escancarar a crise que vinha acontecendo no Brasil, atingindo as populações em situação de rua e extrema pobreza, mas se falava pouco disso. Estava acontecendo silenciosamente”, completou Lopes, autor do livro Redes Sociais Locais: afetividade que gera efetividade nas políticas públicas e organizador de comitê da campanha Comunidade Solidária, iniciativa da Vara da Infância e Juventude junto com entidades da sociedade civil.

 

De acordo com Valente, enfrentar o problema da insegurança alimentar precisa ser enfrentado com mudanças estruturais profundas, incluindo sistematização de dados, avanços na reforma agrária e na demarcação das terras indígenas. Para Lopes, a solidariedade é importante, mas a crise será longa e é dever do Estado implantar uma estratégia efetiva de segurança alimentar. Para o educador social, embora nada substitua a necessidade de se investir em políticas de Estado voltadas à geração de emprego e renda, as ações solidárias devem ser estimuladas.

 

Escolha certa, escolha pelo coração

De fato, a pandemia tem motivado várias dessas ações, como o trabalho que vem sendo desenvolvido pela jornalista Cecília Almeida Lopes, do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde (Nethis/Fiocruz Brasília). “Logo que começou a medida de isolamento, eu me perguntava: como ajudar? Nas idas e vindas ao supermercado, eu via pessoas em situação de rua e tive a ideia de preparar refeições”, contou. Com a ajuda do marido, da cunhada, dos amigos e dos amigos dos amigos, Cecília tem distribuído cerca de 150 quentinhas por semana nas ruas do Distrito Federal. “Seguindo todas as recomendações de distanciamento e proteção, a gente distribui as refeições, conversa e vai conhecendo um pouquinho aquelas pessoas, escutando, sabendo do que elas gostam, tentando agradar. É um trabalho feito com amor”, comentou Cecília. A jornalista chamou atenção para a solidariedade, não só a que ela pratica, mas a que encontrou entre os moradores de rua. “Já encontrei pessoas que recusaram a refeição e me explicaram: ‘hoje eu não preciso, já comi, deixa para alguém que ainda não comeu’”, emocionou-se.

 

No isolamento, as pessoas vivenciam medos e incertezas, e, frequentemente, se questionam sobre suas escolhas alimentares. “Saudável é o que nos faz bem, o que nos nutre não só do ponto de vista dos nutrientes. A gente come porque é bom para o corpo e a alma. Quando compro do pequeno produtor, valorizo uma tradição, uma conexão com o meio ambiente. Resgatar a escolha alimentar pelo coração costuma ser um bom caminho”, sinalizou Denise. Nessa mesma direção, Wanessa comentou a importância de resgatar a prática da culinária em casa, envolvendo as crianças. “Preparar algumas receitas em família é algo que, na correria do dia a dia, acaba sendo deixado de lado, e o isolamento pode ser uma oportunidade de experimentar essas vivências”, recomendou.

 

Parceria com a Editora Fiocruz

Ao final do programa, foram sorteados cinco livros da Editora Fiocruz, um exemplar de cada título disponível do catálogo que aborda a temática nutrição e alimentação. São eles: “Avaliação nutricional na atenção básica”; “Amamentação e Políticas para a Infância no Brasil”; “Segurança Alimentar e Nutricional”; “Alimentação, Sociedade e Cultura”; e “Mal de Fome e Não de Raça”. Os ganhadores foram: Vivian Mello, Neri Vieira, Thaís Pereira Trindade, Sérgio Nóbrega e Beatriz Blackman.  Participaram do sorteio 124 internautas que acompanham a Fiocruz Brasília e a Editora Fiocruz nas mídias sociais, e fizeram perguntas ou comentários no chat relacionados à temática desta edição do Conexão Fiocruz Brasília. Os cinco títulos sobre nutrição e alimentação poderão ser adquiridos com 20% de desconto até 21 de maio na livraria virtual da Editora (www.editorafiocruz.com.br).

 

Para saber mais:

Guia Prático de Orientações para Manipuladores de Alimentos nos Ambientes Alimentares da Fiocruz (anexo 7) e Guia de Orientação em relação à alimentação e ao exercício físico (anexo 9)

Livretos de atividades para crianças na quarentena 

 

Para saber como colaborar com a iniciativa da jornalista Cecília Almeida Lopes, entrar em contato pelo Instagram: @cecilialopes.a