Contaminação da água potável por agrotóxico no Brasil é tema de audiência pública na Câmara dos Deputados

Nathállia Gameiro 14 de junho de 2019


Pesquisador da Fiocruz Brasília afirma que país vive uma contaminação sistêmica, e sugere, entre as soluções, atuações de vigilância em saúde de base territorial integrada e participativa

 

Nayane Taniguchi

 

O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta em volume de produtos, com cerca de 550 mil toneladas de ingredientes ativos em 2017, que indicam um aumento significativo se comparado a 2012 (quando o consumo esteve na marca de 477 mil toneladas), conforme dados apresentados pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados durante a Audiência Pública “Contaminação da água potável por agrotóxico no Brasil”, realizada na tarde de quarta-feira (12/6), em Brasília. 

 

Segundo os mesmos dados, entre 2007 e 2014, houve uma média de oito intoxicações por dia no país (25 mil pessoas intoxicadas no período), número que pode ser ainda maior em razão da subnotificação. “O aumento expressivo no número de agrotóxicos deve ser analisado. Podemos citar o glifosato, veneno mais consumido no Brasil. Em 2014, tinham 14 marcas registradas para a comercialização, e 14 empresas comercializavam. Até metade de abril de 2019, foram registradas 97 marcas e 40 empresas aptas a comercializá-lo. Ao todo, temos mais de 2.200 marcas de agrotóxicos e mais de 300 ingredientes ativos registrados no Brasil”, relatou o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, deputado Helder Salomão (PT/ES). Para o parlamentar, acerca da contaminação da água por agrotóxicos, é necessário saber precisamente quais os níveis de contaminação e se existem produtos já proibidos na água disponibilizada para o consumo, “pensando não apenas nos efeitos imediatos na produção, no meio ambiente e na saúde, mas também nas consequências para as futuras gerações. Estamos falando do direito à vida com saúde”, afirmou. 

 

O pesquisador da Fiocruz Brasília, Jorge Machado, que na audiência pública representou a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco –, propôs uma discussão em torno de propostas relacionadas à fiscalização, intervenção e redução do risco de contaminação na água. “Como poderíamos trabalhar no sentido de reduzir o risco de contaminação humana e de impacto à saúde humana a partir da redução dos agrotóxicos na água, especialmente, mas também na sua circulação, nos seus componentes e situações de exposição?”, questionou. Para ele, uma das soluções está na fiscalização da comercialização de agrotóxicos, a exemplo do glifosato.

 

Como proposta, Machado defende a existência de uma vigilância em saúde de base territorial integrada e participativa, capaz de atuar em conjunto e com a participação das entidades regionais locais das organizações civis e dos agricultores. “Essa discussão de uma redução de risco do agrotóxico na água e nas origens dessa contaminação tem que ser pactuada com o agricultor. Essa proposta está sendo colocada em curso no Mato Grosso e em outros locais do Brasil”, disse. 

 

Para o pesquisador, é importante discutir tanto a epidemiologia quanto a evidência dos casos, mas também fazer uma discussão da geografia, do território, do espaço, de onde essas situações de risco se territorializam. De acordo com Machado, o país vive uma situação de contaminação sistêmica. “Temos uma calamidade: o grau de contaminação do Brasil. Há uma contaminação sistêmica não só na água, mas inclusive nas pessoas dessas áreas mais críticas, que estão 100% contaminadas. Na área crítica do Mato Grosso, por exemplo, é 100%.  Não tem uma pessoa na região de Juruena, no oeste do estado, que não tenha agrotóxico no sangue. Isso é a população inteira de uma cidade, e questão de saúde pública. Se não tem efeito imediato, tem efeito a longo prazo, tem efeito coadjuvante de outras doenças”, alerta. “Defendemos a construção de uma rede de fiscalização que chegue ao território, que faça uma discussão com a agronomia, com o agricultor local, com o poder local, prefeitos, com a organização de uma ação local. Não é um problema ideológico, é um problema universal de saúde pública. Essas áreas estão com todas as pessoas com indicadores biológicos afetados”, acrescentou. 

 

Por trás do alimento

Em um copo de água potável podem estar presentes 27 tipos diferentes de agrotóxicos. Esta é a realidade de um em cada quatro municípios brasileiros, localizados em estados como Tocantins, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Santa Catarina, onde o nível de contaminação é bastante elevado, segundo o estudo Por Trás do Alimento, realizado pelas organizações Agência Pública, Repórter Brasil e Public Eye, divulgado em abril deste ano. A pesquisa expõe números sobre a contaminação da água por agrotóxicos no Brasil, a partir de dados disponibilizadas no Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – SISAGUA –, de responsabilidade do Ministério da Saúde.

 

“Os dados são alarmantes. Temos um problema relacionado à questão dos agrotóxicos no país que é histórica, e essa é uma questão de direitos humanos. Temos os direitos humanos violados no país e dado pouca atenção a esse processo”, afirma Murilo Mendonça, representante da Associação Brasileira de Agroecologia, que, na audiência pública, apresentou os dados da pesquisa. O SISAGUA reúne informações enviadas por autarquias estaduais, municipais e empresas de abastecimento sobre os resultados de testes que fazem a medição da presença de 27 agrotóxicos na água que abastece os estados e municípios brasileiros, de acordo com Mendonça. “Hoje podemos ter 27 agrotóxicos em um copo de água potável e ainda sim ela pode ser considerada potável, desde que esteja dentro dos valores máximos de resíduos estabelecidos no Brasil [denominado Valor Máximo Permitido – VMP], que estão muito além do que a Europa permite”, alerta. 

 

De acordo com o representante da Associação, além do número de agrotóxicos na água por cidade, os dados do estudo permitem visualizar a concentração dessas substâncias em microgramas por litro. A pesquisa disponibiliza essas informações em dois mapas, que ilustram o número de agrotóxicos em cada amostra analisada, a concentração destes e de cada princípio ativo. Mendonça enfatizou ainda o nível de toxicidade de cada agrotóxico, quais são proibidos no Brasil, os que são autorizados no país mas proibidos na Europa, além dos problemas relacionados, principalmente à saúde e impacto ao meio ambiente. “Todos os agrotóxicos que têm sido encontrados na água têm relação e impacto na saúde”, destacou.

 

Entre os estados que detectaram todos os 27 agrotóxicos na água, denominado “coquetel tóxico” por Mendonça, estão São Paulo (504 municípios), Paraná (326), Santa Catarina (228), Tocantins (121), Mato Grosso do Sul (65), Minas Gerais (50), Mato Grosso (30), Rio de Janeiro (10), Sergipe (15), Rio Grande do Sul (14), Espírito Santo (8). Entretanto, os dados não retratam a realidade brasileira em sua totalidade, visto que alguns municípios não enviaram os dados para o Ministério da Saúde. Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.931 não realizaram testes na água entre 2014 e 2017. São Paulo, Santa Catarina, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso e Rio Grande do Sul estão entre os estados continuamente contaminados, e apresentam o maior número de cidades onde o mesmo agrotóxico foi encontrado na água por quatro anos consecutivos (2014-2017). Apenas 13,7% das amostras não apresentaram presença de agrotóxicos.

 

“A maioria dos agrotóxicos encontrados estão abaixo do limite máximo pela legislação brasileira, mas acima do da União Europeia. Os limites permitidos no Brasil são extremamente altos e contrastam de forma muito intensa com que é permitido na Europa e em outros países também. A quantidade de agrotóxicos que aceitamos no Brasil e na água brasileira é uma agressão”, argumenta Mendonça, explicando o caso do glifosato, em que a concentração permitida no Brasil é 5 mil vezes maior que o permitido na Europa. “Do total de 27 pesticidas na água dos brasileiros, 21 estão proibidos na União Europeia devido aos riscos que oferecem à saúde e ao meio ambiente”, disse. 

 

Outro dado preocupante apontado por Mendonça é a mistura dessas substâncias na água. Na União Europeia, há um esforço para restringir a mistura de substâncias: o máximo permitido é 0,5 microgramas em cada litro de água, somando todos os agrotóxicos encontrados. “No Brasil, há apenas limites individuais. Somando todos os limites permitidos para cada um dos agrotóxicos monitorados, a mistura de substâncias na nossa água pode chegar a 1.353 microgramas por litro sem soar nenhum alarme. O valor equivale a 2.706 vezes o limite europeu. A mistura é um grande problema, que o PL do Veneno vai regularizar. Não temos ideia nenhuma do que a mistura, de fato, causa, e o que acontece com a água do Brasil. Temos um coquetel de 27 agrotóxicos e não se tem ideia do que isso pode causar à saúde humana e ao meio ambiente”, enfatizou.

 

A coordenadora de Inteligência em Defesa Agropecuária da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Marcella Teixeira, contrapôs os dados da pesquisa Por Trás do Alimento, ressaltando, ainda, o interesse econômico do país acerca da produção agropecuária, visto que estudos indicam que as pragas resultam em impactos econômicos. Para Marcella, os agrotóxicos são extremamente regulados no Brasil.

 

Ao apresentar dados de contaminantes na água relacionados a 2018, Marcella conta que o Ministério realizou uma avaliação após o início das discussões sobre a contaminação da água por agrotóxicos, considerando os valores máximos permitidos. “O Ministério da Agricultura não concorda com os dados apresentados pela pesquisa apresentada anteriormente. Considerando os valores máximos permitidos e estabelecidos pela legislação brasileira, o índice de conformidade é extremamente alto. A média histórica é de 99%”.

 

Entretanto, para Marcella, todas as novas informações obtidas no meio científico podem ser utilizadas para fazer um processo de reavaliação de produtos. “Este é inclusive um processo feito continuamente tanto pelo Ibama quanto pela Anvisa e o Ministério da Agricultura, que tomam parte nesse processo de forma ativa. Também fazemos reavaliações quando consideramos os agrotóxicos que apresentam alguma redução de eficiência para controle de pragas na agricultura”, afirma.

 

A coordenadora geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde, Thais Cavendish, ressaltou a importância da discussão do tema. “Esse risco já está bastante divulgado, tanto para a sociedade quanto para os produtores. Já temos uma noção mais clara, hoje, de como os agrotóxicos são compostos e que têm a capacidade de gerar na saúde humana efeitos agudos e crônicos a depender da quantidade absorvida, dose, do tempo de contato e de exposição”.

 

A representante do MS apresentou uma linha do tempo sobre os marcos legais relacionados à potabilidade da água para consumo humano e informações sobre o Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água (VIGIÁGUA). “É para isso que a gente divulga os dados, para que a sociedade os consuma, e para que a sociedade os entenda”, disse, ao falar sobre as informações divulgadas pela Agência Publica e a Public Eye, a partir dos números do SISAGUA.

 

Thaís esclarece que o padrão de potabilidade a partir do Valor Máximo Permitido (VMP) adotado pelo Ministério da Saúde é estabelecido pela OMS na publicação Guidelines for drinking water qualities, que “apresenta o olhar da OMS do que é considerado água potável” e que o Ministério da Saúde adota, para definir o padrão de qualidade, essa publicação e outras agências reguladoras do Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos. “Determinamos um conjunto de substâncias que representam risco à saúde no país de acordo com as características ambientais, nossos ciclos produtivos, e que, portanto, devem receber um olhar das autoridades reguladoras para que essas substâncias não estejam presentes em quantidades que signifiquem riscos à saúde”. 

 

Segundo Thais, a OMS se debruça sobre o tema do efeito e da exposição cumulativa das substâncias químicas não só agrotóxicas, mas de outras substâncias químicas, apontando como o desafio atual do setor saúde como um todo. Ela destacou ainda a revisão da atual portaria, que conta com o apoio de instituições como Ministério Público Federal, Abrasco, Fiocruz, além de universidades. “Essa portaria deve ser revisada a cada cinco anos à luz do melhor conhecimento científico sobre exposição a substâncias químicas, agrotóxicos, a padrões microbiológicos”, explicou. 

 

“Temos um cenário que hoje se pode medir, mas ele tem ainda uma ausência de dados muito grande no país, principalmente se olharmos para as regiões Norte e Nordeste. Ainda não temos acesso a muitas dessas informações. É importante fazer esse monitoramento para que a gente possa agir e proteger a saúde das pessoas que consomem essa água, mas muito mais eficaz que olhar o final da cadeia, olhar onde os agrotóxicos estão se comportando na água, é olhar o uso, o abuso do uso, é olhar lá atrás na cadeia produtiva o que está acontecendo nos estados e municípios, nas áreas produtivas, se está faltando vigilância à saúde, assistência técnica rural, se está faltando fiscalização, para que isso realmente não gere o impacto que a gente espera em água de consumo humano, que é só um dos fatores que a gente olha quando se pensa em exposição”, concluiu a representante do MS.

 

O procurador do Trabalho e diretor-geral do Ministério Público do Trabalho, Leomar Daroncho, criticou o posicionamento da representante do Ministério da Agricultura e a não disponibilização dos dados pelo Distrito Federal. “O problema da água é um problema grave, mas a questão dos agrotóxicos não se resume a isso. A água é apenas uma das manifestações”, destacou, fazendo referência às consequências já identificadas com as abelhas e as uvas na região Sul e os bichos da seda no Mato Grosso. “São seres vivos, vegetais e animais que estão indicando o problema, que está chegando nos seres humanos também, pela água e pelas outras vias”.  De acordo com o procurador, apenas 2% dos dados de intoxicação são registrados, segundo a OMS.

 

Como soluções, Daroncho sugere o apoio à utilização de métodos menos agressivos e a intensificação da fiscalização. “Temos um problema grave, que tem que ser tratado na via do financiamento, de tonar viáveis alternativas menos agressivas. Precisamos resolver isso. A pesquisa e financiamento devem considerar o impacto ambiental daquilo que está sendo estimulado”, diz.

 

O procurador ressalta a importância do setor agropecuário para o Brasil, e questiona quem, na verdade, está sendo protegido por medidas liberalizantes que normalizam a contaminação. “Dado recente da CNA [Confederação Nacional da Agricultura] de março mostra que o PIB do agronegócio ficou estável na mudança de 2017 para 2018, cresceu 0,001%, computando todas as atividades, mas o setor de insumos cresceu 12,4%. A renda do produtor está sendo comprometida e corroída por isso. A defesa dos agrotóxicos não é uma bandeira do agricultor. É um método caro que compromete, inclusive, a saúde”. 

 

A audiência pública contou ainda com a participação de parlamentares e de representantes do Ibama e do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea). A íntegra pode ser acessada aqui

Fotos: Comissão de Direitos Humanos e Minorias (Facebook).