Conhecer para não excluir

Nathállia Gameiro 14 de setembro de 2022


Muita história e conhecimento fizeram parte da recepção do segundo semestre dos estudantes da Escola de Governo Fiocruz– Brasília nesta terça-feira, 13 de setembro. A jornalista, indigenista e escritora Verenilde Santos Pereira contou situações vividas por ela ou que escutou diretamente de indígenas, refletindo sobre as consequências para os nativos da região e como o conhecimento pode ser um agente transformador de combate a formas de violência presentes no cotidiano.

Filha de mãe negra e pai indígena, como se identifica com muito orgulho, a professora resgatou a memória do século 19, época marcada por grandes conflitos com entrada de caçadores e contrabandistas no norte de Amazonas. “Invadiam, atacavam e causavam muita morte. Chegavam os não indígenas e eram aquelas epidemias de gripe, pneumonia, tuberculose, isso quando não tinha conflito físico. Muitos eram presos e aldeias eram queimadas. A Amazônia era vista como espaço vazio, como se indígenas que ali habitavam eram alguma outra coisa, mas não gente. Na época tinham projetos econômicos faraônicos, estradas, madeireiras, agropecuárias e fazendas”, recordou. Com o projeto de expansão da Amazônia, uma das grandes construções era a BR 174, estrada que liga Manaus e Boa Vista. A região, rica em minérios, virou local de disputa de terras, já que a etnia indígena waimiri-atroari vivia no local e várias forças e instituições tentaram tirá-los.

Derramamento de veneno, ataques, tiros, esfaqueamentos, mortes por doenças em decorrência do contato e impacto nos modos de vida daqueles indígenas foram algumas consequências. Para Verenilde, os grandes jornais da época publicaram os fatos de forma sensacionalista e distorcida da realidade, o que ela classifica como cheio de fantasia e imaginação que não se verificava, que contribuiu para a exclusão. “Anunciaram como assassinos natos, que odiavam a civilização, como se estivessem empatando um Brasil que queria crescer e se modernizar. Se já existia um grande o preconceito contra os indígenas, a partir desse momento se instalou um ódio. Chamar alguém de waimiri-atroari virou insulto”, lembrou.

Verenilde traz também fresca na memória a constatação de que, passado a época, quando o conhecimento inclusivo começou a ser feito, se verificou que essas frentes que se denominavam de pacificação estabeleceram aos indígenas um regime de civilização total, de forma abrupta, com determinação de horários e trabalho. Segundo a escritora, eles ainda eram vistos como inferiores e foram censurados. Eram cerca de 3 mil indígenas e poucos anos depois, na década de 80, eram apenas 300 pessoas, época em que as histórias começaram a ser narradas com muita dificuldade e surgiu um movimento de resistência que freou a violência.

Na bagagem, a jornalista traz ainda lembranças de episódios que classifica como tenebrosos, que sequer foram noticiados, além de graves consequências como mais de 30 suicídios de crianças de 9 a 12 anos. A professora resgatou essas e muitas outras memórias para destacar que a exclusão e a violência mostram como desconhecer, anular e aniquilar produzem tragédias humanas.

“Ficaram sem língua, sem voz, sem significado. Por isso é preciso conhecer para não excluir e não violentar. O conhecimento existe para que o ruído seja revelado. Cada pessoa, cada área de conhecimento pode contribuir para a preservação de direitos dos povos indígenas no Brasil. Como você, profissional de saúde, vai lidar com o indígena que ouve que vacina é do demônio, que vai fazê-la morrer mais rápido? Sendo que é isso que pode salvar a vida dele? É refletir sobre o que você está produzindo, que destino você vai dar ao seu conhecimento e buscar saídas”, ressaltou.

A diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, destacou a atividade como um resgate importante da memória de uma história que não pode ser invisibilizada. “Não podemos continuar vivendo situações de violência simbólico estrutural. A experiência da memória traz a afirmação e necessidade de construir uma realidade mais justa e menos violenta para a população indígena”, afirmou.

Fabiana falou sobre a construção do projeto da Escola de Governo Fiocruz – Brasília (EGF-Brasília) com base na diversidade de formações e na possibilidade de acolhimento de estudantes das mais diversas idades, da educação básica à pós-graduação e trabalhadores da saúde, para uma educação emancipatória e de valorização do SUS e das políticas sociais. A diretora destacou que é necessário defender cada vez mais o SUS e a saúde como bem público, como foi colocada na Constituição de 88 e na 8ª Conferência Nacional de Saúde, reconhecendo a saúde como democracia e a democracia como saúde.

Ela citou ainda o documento do IX Congresso Interno da Fiocruz, que busca fortalecer a participação dos movimentos sociais – populares, estudantis, sindicais, ambientais, indígenas, negros, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, de mulheres, LGBTQIA+, de pessoas com deficiência e outros, considerando a diversidade étnico racial e de gênero, a diversidade da funcionalidade dos corpos e a diversidade sociocultural e territorial do país – na construção de suas políticas institucionais e na luta pela defesa do SUS.

“Nosso espaço de sala de aula é de diálogo e afirmação da democracia e de construção uma sociedade mais digna, justa, inclusiva e equânime. É dentro do conceito ampliado de saúde que trabalhamos e cada vez mais fazemos nossa afirmação. Que sigamos o exemplo de Oswaldo Cruz e a vocação, principalmente reconhecendo a desigualdade histórica que nos marcam e dá necessidade de garantir saúde e a defesa da vida de todas as pessoas”, disse.

A diretora executiva da EGF-Brasília, Luciana Sepúlveda, reforçou que é preciso refletir sobre a diversidade e utilizar o conhecimento produzido para que sejamos cada vez mais inclusivos, diversos e não violentos, já que a violência simbólica acontece diariamente de forma sutil quando se perpetua ou impõe determinados valores culturais. “As pessoas são diferentes e têm o direito de serem diferentes, na sua forma de estar no mundo. Todos os grupos são igualmente legítimos e importantes. Somos mais que um espaço de transmissão de conhecimentos, estamos lidando com profissionais, estudantes com ensino superior e pós-graduação, e com a população para que possa melhor atuar nas políticas públicas e políticas de saúde, se fazer ouvir e se fazer representar. Quando falamos de educação e saúde, falamos de culturas, na potência de fazer dialogar com a diversidade de conhecimentos necessários para atuar da melhor forma possível sobre conhecimentos de questões de saúde e política pública”, completou.

Durante o evento, foi lançada a coletânea da Mostra da Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Confira aqui. O encontro contou ainda com a participação de uma das coordenadoras do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Saúde da Fiocruz Brasília, Roberta de Freitas, e da egressa da Residência em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas Alessandra Luiza de Oliveira, também cantora e compositora, que apresentou sua música Cuidar do outro é também cuidar de mim, que aborda os receios e dificuldades do trabalho no início da pandemia de Covid-19.

O acolhimento foi transmitido ao vivo no canal da Fiocruz Brasília no Youtube. Para assistir, clique aqui.