Fala aê, mestre: ciência deve basear o uso dos recursos em saúde

Mariella de Oliveira-Costa 14 de fevereiro de 2023


A gestão de políticas de saúde deve ser baseada em evidências científicas, já que é fundamental alocar os recursos escassos que o Estado recolhe dos impostos dos contribuintes em serviços, produtos e demandas que sejam comprovadamente eficazes para a saúde das pessoas. Decidir para onde vai o recurso da saúde é uma tarefa que não deve depender do gosto ou opinião do gestor, seja em nível municipal, estadual ou federal, mas ser amparada nas melhores e mais atualizadas informações científicas. Parece óbvio, mas, na prática, o uso de evidências científicas para formular e implementar políticas públicas de saúde não é comum no Brasil. 

 

O gestor Adriano de Oliveira trabalha na Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES/DF) e fez seu mestrado na Escola de Governo Fiocruz – Brasília. Enfermeiro de formação, atuou por sete anos como gestor de aprendizagem e facilitador nos projetos educacionais do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês (IEP/HSL), e se encantou pelo ESPIE, sigla para o projeto Gestão de Políticas de Saúde Informadas por Evidências. Esse projeto contou com três edições entre 2015 e 2020, e capacitou profissionais para uso de evidências na tomada de decisão em saúde. O ESPIE partiu de um curso de especialização lato sensu, no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), em que a parceria do Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e o Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) mobiliza instituições filantrópicas para realizar projetos estratégicos.

 

Trabalhando como facilitador na primeira edição do ESPIE, como membro da Comissão gestora local na segunda edição e, na terceira, na área de autoria e facilitação, o interesse de Adriano por estudar o ESPIE cresceu e ele fez do projeto seu objeto de pesquisa no Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde (MPPPS). A pesquisa verificou como o ESPIE foi uma das maiores iniciativas brasileiras para desenvolver a capacidade de tradução do conhecimento, uma maneira de tornar o conhecimento científico disponível e acessível aos gestores, para orientar a implementação de ações ou intervenções em saúde. A pesquisa apresenta a efetividade dos métodos adotados pelo ESPIE, na sua abordagem educacional arrojada para fomentar a aplicação do conhecimento no enfrentamento de problemas da gestão local do SUS, e aponta as melhorias necessárias para o aprimoramento do projeto.

 

Segundo ele, para além do título no currículo, o mestrado profissional proporcionou uma compreensão mais ampla e sólida sobre o mundo da gestão de políticas de saúde, em que ele já estava inserido, porém apenas pelo viés da experiência vivenciada. “Passei a ser capaz de refletir melhor sobre minha prática profissional e compreender o universo das políticas de saúde com sua devida complexidade”, afirma. Ele optou pelo MPPPS da Fiocruz Brasília para que os estudos proporcionassem reflexões e oportunidade de desenvolvimento de capacidades efetivamente úteis para seu trabalho, e encontrou aqui vários docentes experientes na gestão pública. Confira abaixo a entrevista de Adriano Oliveira para a coluna do Fala aê, mestre: 

 

Por que estudar o ESPIE em um mestrado profissional? 

Adriano de Oliveira: Eu entendia ser pertinente para um mestrado profissional estudar algo em que eu estivesse efetivamente envolvido. Como eu estava migrando de um órgão público para outro, minha inserção docente no projeto ESPIE era o que eu tinha de mais concreto no momento de início do mestrado. A coordenação do ESPIE no Instituto Sírio Libanês de Ensino e Pesquisa  demonstrou apoio e me deu acesso às informações necessárias. Por último, e não menos importante, refiro-me ao fato de que, assim que tive de efetivamente delinear meu estudo, fomos apresentados à maior crise sanitária da história, a pandemia de Covid-19. A falta de coordenação e a postura negacionista do então grupo gestor do Ministério da Saúde ressaltaram a importância de se discutir sobre o valor do uso de evidências científicas, sistematizadas e confiáveis, como subsídio para o processo decisório na gestão de políticas de saúde. 

 

Como o ESPIE contribuiu para o progresso na construção de capacidades em políticas informadas por evidências no Brasil?

Adriano de Oliveira: A robustez teórica do ESPIE, na forma de uma especialização, associada à proposta de desenvolvimento de sínteses de evidências para a construção de planos de ação no enfrentamento de problemas reais da gestão local em várias regiões do Brasil, fez de sua contribuição algo inegavelmente marcante para a gestão do SUS no Brasil. Outro diferencial do ESPIE foi a composição dos grupos de estudantes, que previa a participação de integrantes da gestão em vários níveis, trabalhadores da saúde, atores da sociedade civil e pesquisadores. Com isso, foi possível disseminar essa tecnologia nos diferentes segmentos que atuam na gestão em saúde, em uma perspectiva mais abrangente do processo decisório em gestão de políticas públicas. 

 

Sabe-se que as decisões sobre uso do recurso público devem ser tomadas com base nas melhores evidências. Por que, na prática, o uso de evidências não é algo comum? Isso é só no Brasil ou em outros países também? 

Adriano de Oliveira: Esse sem dúvida é um desafio mundial. Apesar do incentivo expressivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), no que se refere a esse tema, as iniciativas de disseminação e aplicação desse conhecimento ainda estão muito circunscritas ao universo acadêmico. Os estudos de referência utilizados para análise na minha dissertação elencam as causas dessa dificuldade, e existe inclusive o conceito de know-do-gap, em livre tradução, lacuna entre o saber e o fazer. Tais causas permeiam as limitações que os tomadores de decisão têm para interpretar, adaptar e aplicar o conhecimento científico e o baixo nível de interação entre gestores e pesquisadores. Essa restrição do diálogo pode estar relacionada às diferenças inerentes às suas atividades, interesses e posicionamentos, que incluem atitudes e objetivos diversificados em relação ao uso da informação e das evidências científicas. A formulação de políticas é complexa assim como a agenda concorrida dos tomadores de decisão, que têm pouco tempo para considerar as evidências. A metodologia denominada tradução do conhecimento (knowledge translation) propõe modos de viabilizar esse diálogo, e vem se aprimorando no sentido de instrumentalizar a gestão em saúde conforme a praticidade que se requer. 

 

Qual foi o principal desafio para a execução do seu estudo? 

Adriano de Oliveira: De maneira contraditória ao que declarei como uma das razões de escolher esse tema, meu principal desafio foi o acesso às informações institucionais sobre o desenvolvimento e resultados do ESPIE. Infelizmente, os interlocutores apresentaram morosidade na disponibilização das informações, sobretudo daquelas que se referiam às edições iniciais do projeto. O formato dos documentos disponibilizados não seguia um padrão, o que dificultou a sistematização das informações. Outra dificuldade foi a conciliação das agendas do mestrado com minhas atividades profissionais e familiares, que acredito ser algo bem típico para a maior parte do público de um mestrado profissional. Ao longo desse período, estive ocupando cargos comissionados na gestão, além de desenvolver atividade docente no ESPIE. Com isso, no período pré-pandemia, consegui cumprir muito pouco dos créditos exigidos pelo programa de mestrado. Apesar dos efeitos deletérios advindos da pandemia, a disponibilização das disciplinas em modo virtual me permitiu ultrapassar essa barreira. A sensibilidade e a atuação do meu orientador e da coordenação do programa, ao estender os prazos iniciais de defesa da dissertação, foram fundamentais para que eu não desistisse. 

 

Como o seu trabalho auxilia o SUS? 

Adriano de Oliveira:  A pesquisa traz luz à temática da qualificação da gestão de políticas de saúde por meio do uso sistemático e transparente do conhecimento científico no processo decisório. Revela ainda os métodos que podem ser aplicados para a implementação dessa tecnologia. Espero que esse trabalho tenha contribuído para a própria instituição promotora do ESPIE avaliar suas estratégias, para o Ministério da Saúde considerar reativar o projeto em sua forma mais potente e para que gestores de todo o Brasil se atentem à relevância dessa temática. 

 

Abaixo, você assiste ao vídeo que Adriano desenvolveu durante o mestrado, na disciplina Comunicação, Saúde e Sociedade Contemporânea, apresentando seu tema de pesquisa. 

 

 

Adriano de Oliveira é autor da dissertação “Cultivando o uso de evidências na gestão de políticas públicas de saúde no Brasil: o caso do projeto ESPIE”, defendida em 29 de abril de 2022, com orientação do professor Jorge Otávio Maia Barreto. 

 

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