Das ruas para o debate: seminário apresenta soluções pelo direito de existir com dignidade

Nathállia Gameiro 28 de outubro de 2025


Pesquisadores, gestores e lideranças sociais apresentaram experiências nacionais e internacionais de cuidado com a população em situação de rua

“Não se constrói política pública para a população em situação de rua sem ouvir quem vive essa realidade”, afirmou Marcelo Pedra, pesquisador do Núcleo de Populações em Situações de Vulnerabilidade e Saúde Mental na Atenção Básica (Nupop) da Fiocruz Brasília, durante o Seminário Internacional Pessoas em Situação de Rua: Cuidado Integral e Direitos Já!. O evento, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), Fiocruz Brasília e o coletivo Trilhas de Cuidados nas Ruas, reuniu especialistas, gestores e lideranças sociais do Brasil e de outros países para discutir estratégias de enfrentamento às desigualdades e promoção do cuidado integral.
 
A importância da escuta, da intersetorialidade e da articulação entre Estado e sociedade civil para garantir dignidade e direitos às pessoas em situação de rua foram alguns destaques do encontro. Marcelo Pedra apresentou o Colaboratório Nacional PopRua, iniciativa desenvolvida pela Fiocruz Brasília em parceria com o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), a Rede Nacional de Consultórios na Rua, universidades federais e outras instituições.

Criado em 2023, o Colaboratório está presente em 14 capitais brasileiras: Manaus, Belém, Natal, Recife, Maceió, Fortaleza, Salvador, Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo, Florianópolis e Porto Alegre.  “O Colaboratório é um espaço vivo de construção coletiva. A gente aprende com quem está na ponta, com quem vive essa realidade todos os dias. A proposta é unir a força dos movimentos sociais com a capacidade técnica das instituições públicas, para que as políticas sejam realmente construídas junto de quem vive as ruas”, explicou Marcelo.

A estrutura é composta por quatro eixos principais: um grupo de pesquisa, que sistematiza dados e informações sobre políticas públicas e serviços existentes; um fórum consultivo, que reúne representantes da academia, movimentos sociais e gestores para planejar ações conjuntas; polos descentralizados volantes que atuam nos territórios qualificando serviços e apoiando a garantia de direitos; e a Escola Nacional PopRua, responsável por formações políticas e oficinas itinerantes com pessoas em situação de rua.

Entre 2023 e 2024, o Colaboratório realizou cerca de 950 atividades presenciais e formou mais de 2.700 pessoas, sendo 1.900 pessoas em situação de rua, em cursos, oficinas e ações de formação política e cidadã, fortalecendo o protagonismo dessa população na formulação de políticas públicas.

Além disso, o projeto contribuiu para a produção de cadernos metodológicos e guias intersetoriais, desenvolvidos em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e o Ministério da Saúde, que orientam gestores e equipes sobre o trabalho conjunto entre os sistemas SUS e SUAS.

A experiência de Salvador (BA) foi apresentada por Ravena Lima, coordenadora de Ação e Prevenção de Políticas sobre Drogas, que detalhou o Programa Moradia Assistida — projeto que oferece moradia digna e acompanhamento psicossocial a pessoas que vivem nas ruas há mais de cinco anos e enfrentam uso abusivo de substâncias.

O programa entrega casas mobiliadas, promove formação profissional, reintegração familiar e acompanhamento por equipes com assistentes sociais, psicólogas e redutoras de danos. “Falar de uma oferta de casa é muito mais do que oferecer uma casa”, afirmou Ravena ao lembrar que a partir da moradia, são fortalecidos os vínculos com a família, a comunidade e com a própria vida. “Moradia assistida é cuidado integral e direitos já”, sintetizou.

Visibilidade para as boas práticas
A pesquisadora da ENSP/Fiocruz e integrante do projeto Trilhas de Cuidado nas Ruas, Mirna Teixeira, apresentou o Catálogo Nacional de Experiências de Cuidado à População em Situação de Rua, lançado durante o seminário. O material reúne iniciativas, projetos e práticas intersetoriais de todo o país, com foco em moradia, geração de renda, saúde, proteção social e fortalecimento de vínculos. “A ideia do catálogo é dar visibilidade às experiências que vêm acontecendo em todo o Brasil e inspirar novas práticas de cuidado. Cada experiência conta uma história de resistência e de reconstrução”, explicou.

Entre os critérios de seleção das práticas estão a promoção das necessidades básicas (moradia, alimentação, saúde e convivência); fomento à inclusão social e autonomia; inovação metodológica e integração de diferentes políticas públicas; envolvimento ativo da comunidade e sustentabilidade das ações; e alinhamento ao paradigma do cuidado integral e da redução de danos.

O catálogo busca dar visibilidade às práticas inovadoras que promovem dignidade e autonomia às pessoas em situação de rua. O material será atualizado periodicamente e funcionará como um repositório aberto e colaborativo, hospedado em ambiente digital, de acesso gratuito. “Queremos que o catálogo seja um espaço vivo, que continue crescendo com novas experiências e nos ajude a formular políticas públicas mais eficazes”, afirmou Mirna.
Segundo ela, o material também servirá como base para a organização de seminários temáticos, estudos comparativos e produções científicas voltadas à população em situação de rua. “Cada vez mais precisamos fortalecer o cuidado de forma intersetorial, envolvendo saúde, educação e assistência”, afirmou. A primeira edição está disponível online.

Experiências internacionais 
O painel apresentou ainda um panorama das estratégias adotadas em diferentes países para enfrentar a exclusão social e garantir moradia. Paula Correa, consultora de Proteção Social no Banco Mundial, destacou o modelo “Housing First” (Moradia Primeiro), originado em Nova Iorque e que tem gerado resultados positivos em países como Finlândia e Estados Unidos.

“A situação de rua é um fenômeno complexo que exige respostas diversas, integrais e centradas nas pessoas”, pontuou Paula. Ela explicou que a Finlândia reduziu em 78% o número de pessoas em situação de rua desde 2008, ao priorizar a oferta de moradia antes de outras intervenções, sempre acompanhada de serviços de saúde, educação e emprego.

Nesse modelo, a moradia não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida para a reconstrução da vida, um direito garantido de forma incondicional, acompanhado por equipes multidisciplinares de saúde e assistência.

Para ela, não existe um único modelo de sucesso, mas princípios que podem ser adaptados a cada realidade. “É fundamental entender que as soluções precisam partir das necessidades reais das pessoas, e não de uma lógica punitiva ou condicional. A casa é o primeiro passo, não o prêmio”, enfatizou Paula.

Ela apresentou também experiências de países como França, que aposta na moradia social com aluguel subsidiado e intermediação no mercado privado, e nos Estados Unidos, onde o programa coordena, em âmbito municipal, redes de serviços integrados em saúde, moradia e apoio jurídico.

Paula destacou ainda a importância de ações de prevenção, citando exemplos de políticas que evitam a perda da moradia por motivos econômicos, de saúde ou violência doméstica. “A prevenção é uma responsabilidade compartilhada entre habitação, saúde, educação e assistência social. É preciso evitar que as pessoas cheguem à rua, e isso só se faz com redes fortalecidas e integradas”, completou.

Já o colombiano Roberto Carlos Ângulo, secretário distrital de Integração Social de Bogotá, apresentou o redesenho dos serviços públicos voltados à população em situação de rua na capital. Ele explicou que o governo local adotou o conceito de exclusão extrema, que ultrapassa a ideia de pobreza: é a acumulação simultânea de privações sociais, econômicas e comunitárias, associada à perda da residência habitual. “A habitabilidade na rua não é apenas uma forma de pobreza, mas uma forma extrema de exclusão social”, afirmou. 
 
Com base em um censo realizado em 2024, Bogotá mapeou as causas e características da exclusão social. A pesquisa revelou que o tempo médio de permanência nas ruas é de 12,6 anos, e que um em cada cinco habitantes de rua começou essa trajetória antes dos 18 anos. O que, segundo Roberto, evidencia falhas estruturais no sistema de proteção à infância e juventude.

A partir desses dados, a cidade estruturou um ecossistema de serviços habitacionais diversificados, que inclui moradias transitórias, hotéis sociais e residências para idosos, além de estratégias conjuntas com o sistema de saúde para prevenção e tratamento do consumo de substâncias. 

“Nosso desafio é transformar o modo como a cidade enxerga e acolhe essas pessoas. Elas não são o problema, são parte da solução quando lhes damos oportunidade de reconstruir vínculos e exercer cidadania”, concluiu Roberto.